A cultura de um povo é toda a sua memória.


segunda-feira, 24 de maio de 2010

Antipetição e destruição de Mindelo, Cabo Verde

«Não apenas a língua, mas toda a cultura, constitui a expressão da identidade de um povo. (…) A preservação dos valores culturais do passado não pretende cultuar uma ordem social ultrapassada, senão registar a sua superação. (…) A Ribeira Grande, actual Cidade Velha, com «edifícios quase destruídos e os que restavam cobertos de palha» (Barcelos, Parte V:158-159). Os objectos de prata de sua Sé Catedral foram, nessa época, fundidos e transformados em moeda (Barcelos, Parte V:158-159). Os grandes edifícios desabitados eram demolidos e as suas pedras enviadas por barco para a Praia (Valdez, 1864:113-4). Nem sequer a Sé foi poupada. Em 1875, o Secretário-geral do Governo solicitava ao bispo autorização para a demolir e para aproveitar o seu material (Brásio, 1960:29).» (Paulo Ormindo de Azevedo). *

«Antipetição e destruição de Mindelo, Cabo Verde», Nuno Ferro Marques

In Liberal, 3 Março de 2010

http://liberal.sapo.cv/index.asp?idEdicao=64&id=27529&idSeccao=527&Action=noticia

Temos acompanhado, tanto quanto possível, e a partir de outra ilha do arquipélago, o debate em torno da Casa do Dr. Adriano Duarte Silva. Nunca fizemos um estudo sobre este edifício, e a sua envolvente, enquanto património cultural, nem temos de o fazer, mas isso não impede a nossa participação, em exercício de cidadania, sob a forma crítica de denúncia ou artigo de opinião. Sobretudo, quando é público e notório que determinadas instituições públicas deveriam ter feito tal estudo, mas não o fizeram, aliás, menosprezaram os cidadãos, os especialistas e as demais instituições públicas que o têm feito.

Das memórias que conservamos desta casa, admitimos que, para além da sua história, o edifício e o seu enquadramento exterior, possuem características relevantes para os classificar como património cultural, naturalmente, sob um crivo cultural cabo-verdiano, o qual não deverá ser decalcado de qualquer outro contexto. O facto de tal edifício, como tantos outros, ainda não ter sido classificado, certamente, se ficará a dever ao facto de o nosso estádio de desenvolvimento, não ter sido capaz de promover tal prática, de forma significativa, muito menos, quando tanto se investe, contraproducentemente, em funcionários do regime que entendem por património cultural meramente “o que está no BO” (Boletim Oficial).

Seja como for, também está no “BO”, ademais, na Constituição, o «direito de petição e acção popular» (Artigo 58.º), incluindo o direito de os cidadãos «serem informados em prazo razoável sobre os resultados da respectiva apreciação», sendo certo que a contrapetição ou antipetição de que nos dão conta as notícias, «um abaixo-assinado com cerca de 3 mil assinaturas a favor da construção da Delegacia de Saúde nesse local», em nada anula a petição original em prol da salvaguarda da Casa do Dr. Adriano Duarte Silva.

Com efeito, antes mesmo duma classificação, uma proposta de classificação, por parte de entidades públicas e/ou privadas, como não poderia deixar de ser, possui efeitos que não poderão ser ignorados, nomeadamente, medidas cautelares, sob o risco de, uma vez findo o processo de classificação, já não existir o bem classificado. E, por sinal, de alguma forma já existe uma proposta, e até existe um estudo por parte do Instituto de Investigação e Património Cultural, tanto mais que os principais promotores da petição alegam que o edifício se encontra em vias de classificação, figura técnica e jurídica que tem implicações concretas.

Portanto, não cremos que a tal obra esteja em condições de ser iniciada como foi publicitado. Quando muito a Direcção-geral das Infra-estruturas e Saneamento Básico do Ministério do Estado e das Intra-estruturas, Transportes e Telecomunicações queria anunciar que já fez (mas fez mal) a sua parte, a pedido do Ministério de Estado e da Saúde. Aliás, esperamos que os cidadãos mais informados sobre esta causa avancem com uma acção popular. Naturalmente, no Tribunal. É um recurso constitucional assaz importante de ser utilizado e que não precisa sequer de mais do que uma assinatura. Supomos que um advogado experiente fá-la-á (em representação do requerente), certamente, em algumas horas.

De notar que a primeira acção popular que se realizou em Cabo Verde (em 2007) precisou de passar pela Assembleia Nacional, por imperativo constitucional (o Artigo 198.º, Responsabilidade criminal dos membros do Governo, a carecer de revisão constitucional) por se tratar de uma acção popular contra o incumprimento do estatuto dos titulares de cargos públicos perpetrado por um governante, neste caso o Primeiro-Ministro. Outras acções populares não têm por que não entrar directamente para Tribunal, o local mais indicado para uma acção popular, sem prejuízo das demais iniciativas.

Não obstante, subsistem outros problemas a vencer, é que temos instituições, Assembleia Nacional, Governo e Municípios incluídos, que não respondem a petições, e assim desafiam o povo, no mínimo, às acções populares, em defesa do cumprimento do estatuto dos cargos públicos e para defesa do património do Estado e de demais entidades públicas. Que melhor exemplo de desobediência dos titulares dos cargos públicos? E de desafio à desobediência dos cidadãos? E que melhor desafio ao «direito de resistência» (Artigo 19.º da CR), entre outros? Afinal, o que o Governo e as Câmaras vêm fazendo não passam de múltiplos golpes ao Estado de direito. Mas a lei confere ao povo o poder de impedir a destruição do património do Estado - seja ele património cultural por “BO” ou não - e de demais entidades públicas.

Fazemos votos que tais titulares de cargos públicos e políticos, tarde ou cedo, se dêem conta (esperemos que não tenha de ser a partir da Ribeirinha) que há muito que “está no BO” legislação bastante contra a delapidação dos parcos recursos deste povo.

(*) Paulo Ormindo de Azevedo, «Cabo Verde – A preservação da sua memória», Relatório da Missão da UNESCO (1980 – 1981) sobre o Património Cultural de Cabo Verde, Paris, 1981, recuperado pelo 1.º SIRUM – Seminário Internacional de Reabilitação Urbana do Mindelo, 2006, e pela Revista ecdj, do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, número 10, 2007, Introdução/ Da destruição à valorização:16.

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