A cultura de um povo é toda a sua memória.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Delegacia de saúde e património urbano - Nuno Ferro Marques

«Este centro histórico [do Mindelo] não é (…) facilmente reconhecido como tal. (…) A origem desta confusão está numa prática que tem sempre privilegiado a pura e simples transferência de conceitos e experiências consolidados em contextos muito diferentes daqueles onde pretende-se actuar. (…) Definir, portanto, a idéia de centro histórico tendo como objeto de estudos cidades como Mindelo, em Cabo Verde, ou Laguna e Santana do Parnaíba, no Brasil, entre tantas outras cidades disseminadas pelos portugueses nas duas margens do Atlântico, esbarra na diversidade que estas apresentam em relação aos centros históricos europeus. São cidades que nascem à revelia do seu hinterland e têm de raiz a perspectiva contemporânea de um crescimento ilimitado que resulta numa pouco clara definição dos seus limites (…) Muito mais que o conjunto de monumentos arquitetônicos excepcionais, elas são um único monumento formado por um conjunto de arquiteturas nada excepcionais. Mas serão estas arquiteturas, elementos fundamentais para a construção da identidade do lugar.» (José Pessôa). *

Liberal, 8. Mar. 2010

Delegacia de saúde e património urbano

http://liberal.sapo.cv/index.asp?idEdicao=64&id=27593&idSeccao=527&Action=noticia

A casa Adriano Duarte Silva, entre outras histórias, tem um passado ligado à história da saúde. À primeira vista alguns de nós não somos necessariamente contra a ideia da instalação de um equipamento de saúde num edifício «em vias de classificação» como património cultural, mormente, quando o tema da saúde aparentemente tudo tem a ver com a história do edifício. Pode até dizer-se, mas não para ser tomado à letra, que é preferível um mau uso ao abandono do património cultural. Não obstante, as exigências de hoje relativamente a uma Delegacia de Saúde, são incomparavelmente maiores do que as do século passado ou antepassado. Ademais, olhando para o potencial deste lugar, o edifício, os jardins e escadarias e a demais envolvente, e olhando para as exigências que uma instalação de saúde terá de ter, não apenas hoje, mas ao longo das próximas décadas, há aqui clara desproporção, a fazer lembrar o cidadão que encontra o botão na rua e manda fazer um fato para o botão…

Com efeito, tudo dependerá do programa e das dimensões deste equipamento de saúde, e da conciliação das necessárias instalações técnicas e da funcionalidade do empreendimento com a reabilitação de interiores e exteriores do edifício. Ora, não é nada fácil conciliar estes aspectos, entre tantos outros, muito menos, quando as instituições públicas, não estão sensibilizadas para os custos da cultura, e começam por querer poupar no estudo do património cultural, mas acabam por esbanjar recursos em consequência dessa abordagem menos culta. Dir-se-ia que nós não estamos a ver o quanto está a ser esbanjado e/ou o quanto não estará a ser explorada, ou talvez não esteja, a equipa projectista que teve a sorte ou azar de lhe ser adjudicada, com ou sem concurso público, tão “azarada” encomenda.

Todavia, as tipologias arquitectónicas e as morfologias urbanas do lugar, quarteirões vizinhos incluídos, constituem raro conjunto de património cultural, com vocações que estão a ser subaproveitadas. Por outro lado, o programa e a funcionalidade de uma Delegacia de Saúde que seja viável e evolutiva estão comprometidas, seja pelo edifício, seja pelos seus espaços exteriores, organizados em planos desnivelados e escadarias, seja pelo lote, cercado por vias inclinadas. Por outras palavras, tudo aquilo que este lugar tem de melhor é exactamente aquilo que menos convém a um equipamento de saúde.

Imaginemos o grande número diário de utentes que demandam a Delegacia de Saúde, incluindo médicos, enfermeiros e outros técnicos, a descerem de um meio de transporte e a entrarem em tais instalações, ou vice-versa, em local tão elevado e tão acidentado. Imaginemos agora os utentes que sejam portadores de deficiências, grávidas e idosos com problemas de locomoção que demandem os serviços da Delegacia de Saúde. Ei-los que chegam, por três vias, a Norte, a Oeste e a Sul. Que bela acessibilidade. Mas há um senão. Poucas ruas são tão inclinadas em São Vicente se prestam a um cidadão estatelar-se, como aquele troço da Franz Fanon, ao Norte do lote em questão. Nenhuma outra casa em São Vicente possui uma escadaria assim como aquela que se articula com a Travessa de Dr. Salis, a Oeste do lote. E, finalmente, poucos lotes terão um acesso tão difícil, se o concebermos a partir da Avenida Unidade de Guiné - Cabo Verde, a Sul do lote. Para quem não saiba, ou não se lembre, ali há um muro com vários metros de altura, a tapar o monte que foi serrado para se fazer passar a avenida.

Assim mesmo, a Avenida Unidade de Guiné - Cabo Verde é a via circundante mais favorável em termos de circulação e estacionamento, pelo que vamos esquecer o sistema de circulação do edifício e da sua envolvente, dentro e fora do lote, e o demais contexto pré-existente, assaz indissociável de toda a reabilitação que se preze, e vamos concentrar os acessos num único ponto da dita avenida que passa alguns metros abaixo do edifício existente. Certamente que teremos de fazer-nos elevar para chegar àquela plataforma em miradouro sobre a paisagem urbana onde está o edifício. Haverá elevador/es? Serão alvo da melhor manutenção? Funcionarão com ou sem cortes da Electra? Com gerador? Tudo para servir quantos pisos úteis? Um piso lá no alto?

Já que se teve tanto trabalho, façam-se mais uns pisos, uns para cima, para que se faça «uma obra de arquitectura moderna e bonita, também, património do Estado», como diria, a optimista Edil, outros tantos para baixo, para não parecer mal investir tantos recursos só para chegar lá acima. Far-se-á portanto uma grande escavação que traga uns tantos pisos até ao nível da rua. Uma banda ou até mesmo uma torre de meio corpo enterrado, rodeada de terra por todos os lados, menos por um, ou dois, pela frente e pelo céu. E não esqueçamos as rampas. Rampas e mais rampas para vencer os desníveis que deram àquela casa a particularidade das suas escadarias e jardins? Ou esqueçamos as rampas, as normas e os regulamentos pela supressão das barreiras arquitectónicas, e façamos letra-morta da Constituição. Ou esqueçamos a Delegacia de Saúde e a casa Adriano Duarte Silva que começam a ficar relegadas lá em cima para o plano do infinito e avancemos, em regime de parceria pública ou privada para uma «uma obra de arquitectura» ainda mais «moderna e bonita». Como já se percebeu, é sempre possível fazer-se aqui um belíssimo projecto e melhor obra. E o contrário também é verdade. Mas levemos um pouco mais longe este raciocínio, entendido sempre como o nosso contributo de cidadão para a melhor solução.

«A casa, que hoje [1984] funciona como consultório do Dr. Fonseca, é muito velha e existia já na década de 1870. O construtor da casa original foi o Dr. Salis, o primeiro Director do hospital militar/civil no Mindelo a partir da década de 1870. Anteriormente, entre 1867 e 1869, foi membro da Comissão Municipal. Por causa da localização da sua moradia, a travessa entre a Avenida Unidade de Guiné - Cabo Verde e a rua Franz Fanon teve o nome de travessa de Dr. Salis. Também, do outro lado da travessa havia edifícios pertencentes ao doutor. Mais tarde o prédio passou a propriedade da família Duarte Silva que também possuía terrenos adjacentes. Logo após a compra do prédio o Dr. Roberto Duarte Silva mandou remodelar a casa do Dr. Salis – isto por volta dos finais do século. A casa era moradia do filho, Dr. Adriano, advogado e deputado de Cabo Verde, quando foi feita a grande escadaria que liga à travessa, no fim da década trinta. O edifício sofreu ao mesmo tempo uma ampliação do lado Norte. Nos anos sessenta, com a morte do Dr. Adriano, a casa foi alugada e funciona agora [1984] como consultório do Dr. Fonseca.» (Brita Papini). **

Muito embora este local tenha sido construído por Dr. Salis, o primeiro Director do hospital militar e civil no Mindelo, este local foi concebido para habitação e como habitação funcionou durante quase um século (de 1870 até aos anos sessenta) tendo funcionado depois como consultório do Dr. Fonseca que veio a ser arrendatário. Ora, tecnicamente, ou mesmo, simbolicamente, a casa de um director de um hospital, e até mesmo um consultório (e nada indica que este tenha sido o melhor local para a instalação de um consultório) pouco ou nada tem a ver com uma delegacia de saúde. À partida até pode parecer que há uma relação, mas ela não é relevante a ponto de fazer da Delegacia de Saúde uma escolha feliz para este local. Sabe-se, aliás, de várias propostas de localização para a delegacia, apresentadas por quem tem a obrigação e até por quem não a tem de o fazer mas ter-se-á feito questão de preservar a mesma opção.

Porém, se a história da saúde em Cabo Verde é argumento para se instalar ali um equipamento de saúde, então, com maior propriedade, teríamos de considerar a história da física e da química (e mais remota e forçada a história da farmácia) ligadas à vida do cientista de renome Roberto Duarte Silva (1837 - 1889) que terá adquirido esta propriedade ao proprietário original, ou teríamos de considerar a história a história do direito, mas, sobretudo, da educação, da política e da diplomacia, ligadas à vida de Adriano Duarte Silva (1892 - 1961). Meditando pois um pouco mais apercebem-nos que mais justos seríamos se à generosidade destes homens para com o povo de Cabo Verde, soubermos retribuir com um destino igualmente generoso para esta casa. Se soubermos episódios da vida de Adriano Duarte Silva, como aqueles ligados à construção do cais acostável, à reabertura do Liceu em São Vicente, ou a atitude com que o Deputado representou o povo cabo-verdiano, em pleno regime do Estado Novo, haverá pano para mangas para se encontrar melhores usos e desenvolver muito mais a ilha, a região e o país através de uma escolha bem mais estratégica.

Pois então porque tanta fixação do Estado para com os seus titulares e tão pouca para os nossos cidadãos que demandam as instituições públicas? E porque tanta fixação do Estado contra os bens privados ou de origem privada? Afinal, uma Delegacia de Saúde neste lugar repleto de cultura cabo-verdiana será uma escolha generosa, somente, para o Delegado de Saúde e os demais colegas de delegacia. Mas os cidadãos que demandam uma Delegacia de Saúde não usam esse espaço deste edifício e dos seus espaços exteriores de forma a tirar dele o melhor proveito.

Este espaço presta-se sim, a funções simbólicas de representação, não as do poder, mas sim as da comunidade, funções culturais, educativas e de lazer que permitam desfrutar com mais generosidade as tipologias arquitectónicas e morfologias urbanas de todo aquele conjunto. Sem prejuízo de outras funções alternativas e complementares, e sem ter feito um estudo aturado, nem ter por que o fazer, e porque tal não impede a nossa participação, em exercício de cidadania, sugerimos, à falta de uma cidade universitária, um bairro universitário que integre a casa Duarte Silva, o Liceu Velho, o Palácio e o demais casario com diversos equipamentos que dinamizem o centro histórico, de dia e de noite, incluindo, justamente, residências universitárias para docentes e/ou discentes. Dentro deste espírito, muitas funções privadas ou público-privadas, bem mais generosas que a de triste delegacia, poderiam ser atribuídas à casa Adriano Duarte Silva. E um futuro bem mais promissor se poderia vislumbrar para as gentes dos quarteirões vizinhos.

Desconhecemos se a Câmara Municipal de São Vicente alguma vez adquiriu a casa Duarte Silva aos herdeiros, se a herdou ou se dela se apropriou por outras vias. Também desconhecemos se o Delegado de Saúde, para além de local de trabalho bem arejado estaria a contar com residência de serviço na propriedade de Salis, o primeiro Director do hospital militar e civil no Mindelo, com uma localização de ouro. Afinal, exemplo histórico por exemplo histórico, se o Delegado quiser seguir o exemplo de Salis ou de Silva, ele irá construir ou adquirir, ou talvez que já tenha construído ou adquirido, uma casa que fique igualmente para a história, imbuída, também ela, da generosidade de seu proprietário.

De modo que, sem querer ferir susceptibilidades, perguntamo-nos se o Delegado sua equipa a sua equipa se importariam de ficar um pouco menos em cima da «morada», ou seja, se eles se importariam em ficar um pouco mais longe do centro, libertando este espaço para funções ainda mais nobres do que as suas pessoas? É que já há tantas e tão melhores ideias para um uso que integre não só a casa Duarte Silva, como o demais casario, historicamente articulado a este edifício pela Travessa de Dr. Salis. Pois, o que não dirão os cidadãos em relação ao esbanjamento de espaços nobres da cidade, por um lado, e de dinheiros públicos, por outro, dinheiros que terão de ser gastos para minorar a má escolha deste lote para a localização de uma má delegacia de saúde? Não são bastantes as lições que se podem extrair das escolhas tipo “Sodade” e outras escolhas do conferencista e investigador Edil passado?

Sempre sem prejuízo das melhores propostas que venham a surgir, será possível contornar a armadilha típica, a «reabilitação da antiga casa de Adriano Duarte Silva, sem comprometer a funcionalidade da delegacia»? Neste particular, é sintomático que, depois de tudo o que se passou, o regime tenha anunciado que «as obras vão arrancar até ao fim deste mês», por sinal, sem mais notícia de apresentação pública. Qual será o resultado? A obra não vai à frente porque os custos serão altos demais e, entretanto, já esbanjámos fortunas em projectos, deslocações e apresentações públicas? A obra faz-se mas deita-se por terra, e sem remissão, um exemplar único do património cultural ou o seu contexto, para, alegadamente, poupar, como se o enterro do património não tivesse os seus custos para uma Nação, desde logo, os custos sociais e económicos?

Queiramos ou não, pagaremos pelas obras de arte dos ministros e directores empreiteiros do regime. Resta saber se agiremos em conformidade e, evidentemente, não nos referimos tão só à responsabilização política, ou se a culpa do esbanjamento do património cultural, da cidadania e demais recursos, mormente, os financeiros, em qualquer caso, eventualmente, vai ser enterrada com os demais segredos desta história.

Manifestamente, com ou sem a responsabilização criminal dos titulares de cargos públicos e políticos, se não arrepiarmos caminho, quando tivermos os tais “BOs” (Boletins Oficiais), já não teremos património a salvaguardar, ou iremos salvaguardar, como sempre, às custas dos proprietários, e sem qualquer incentivo, o património menos mau que todavia persistir. Entretanto, a bitola cultural continuará a minguar. É o que está a passar-se em Praia, São Filipe e Mindelo, para só referir as cidades mais antigas. Para assegurar em dois tempos a delapidação de todo território nacional já não é preciso mais. Um dia, restar-nos-á o património de papel e a longínqua estória de uma Nação que se diz erigida de cultura e educação, para inglês ver.

Notas:

(*) José Pessôa, «A Identificação de um Centro Histórico», Revista ecdj, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 10, 2007: 51-2

(**) Brita Papini, «Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo», Fundo de Desenvolvimento Nacional do Ministério da Economia e Finanças, Praia, 1984: 183.

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