Entrámos nesta militância cívica em defesa do nosso património histórico-cultural, não por qualquer quixotismo bacoco, mas porque fomos a isso obrigados, no intuito de não deixar ir pelo cano de esgoto o pouco que nos resta como referência de uma memória colectiva que desejamos preservar. É verdade que de um ponto de vista ideológico e conceptual as opiniões podem dividir-se acerca do conceito de património. E também não é menos verdade que o poder político em Cabo Verde, por não dispor de uma manta que dê para cobrir tudo, tende a hierarquizar as suas prioridades governativas usando uma bitola mais conforme com as exigências materiais que as da cultura, colando a estas um rótulo de adiamento indeterminado.
Só que chega uma altura em que nos apercebemos do risco que é o esvaziamento contínuo daquilo que se relega por não ser imediatamente apelativo. E angustia-nos tal perspectiva, porque privar um povo de referências materiais em que se revê e se reconhece é o mesmo que subtrair-lhe o espaço de inclusão interior, aquele que transcende o território material para se projectar amplamente no simbólico. Os lugares de memória e, até, de esquecimento são geradores de força anímica imprescindíveis à construção da história, pelo que é inaceitável que não mereçam a devida atenção de quem de direito, quando há múltiplas formas possíveis de os valorizar e integrar no contexto social e vivencial.
Muito se tem falado em Património e convém relembrar o significado do vocábulo, para se poder apreender a similitude semântica entre o sentido corrente do seu uso e o que ficaria mais tarde consagrado quando aplicado à figura jurídica do Estado. O termo Património, que no seu uso mais frequente significa os bens que herdamos dos nossos pais, aparece conotado como herança social nas Repúblicas saídas da Revolução Francesa. Com efeito, conquistando a França a plenitude da sua consciência política, com o poder soberano devolvido “lato sensu” ao povo, foi entendido que o Estado devia exercer uma tutela irrestrita e proteccionista sobre tudo o que tinha uma relação directa com a história pátria, desde monumentos e palácios a museus e outros bens e testemunhos materiais que pudessem ser considerados herança colectiva. Mais tarde, com a consolidação dos modernos estados-nação europeus durante o século XIX, a necessidade de reforçar os valores nacionais e de os sobrepor aos regionais implicou a construção de monumentos cívicos e históricos que funcionassem como instrumento balizador da memória colectiva e legitimador da consciência cívico-patriótica. É quando começa a enraizar-se o conceito de Património Cultural.
Cada nação arroga-se o direito de designar e classificar o seu património cultural, cuja dimensão, riqueza artística e diversidade tipológica variam naturalmente com o legado recebido dos antepassados. Cabo Verde tem a herança que tem e não pode de forma alguma renegá-la ou menosprezá-la por vê-la associada à época da colonização. Cabo Verde é o produto singular de uma miscigenação étnico-cultural, pelo que a sua história resulta, irrecusavelmente, de uma mutualidade de contributos, não podendo, por isso, rejeitar qualquer deles, sob pena de se trair no mais fundo das suas raízes. Se a jovem nação cabo-verdiana tivesse tido a pretensão de passar uma esponja sobre o passado colonial, arriscava-se a não possuir história ou qualquer referencial de memória, que, em certos casos, também funciona eficazmente pelo efeito inverso, isto é, utilizando a memória como via para o esquecimento e para o perdão.
Conservam-se no mundo os vestígios da escravatura para que não se esqueça um período de aviltamento da condição humana. Conserva-se em Santiago o Campo de Concentração de Tarrafal para perpetuar a memória de um regime político iníquo. Tudo para esquecer. Todavia, ao lado de factos e acontecimentos que são compreensivelmente destinados ao sótão da memória, como as secas, a fome e o relativo abandono secular das ilhas, outros há que têm a tessitura de um memorial de honra, valor e coragem. Por exemplo, a Casa Adriana, que queremos salvar do camartelo, é o retentor da memória do alto espírito que nela viveu e isso tem o condão de nos transmitir energias positivas e estimular sentimentos nobres.
Verifica-se que, a seguir a uma fase de opressão política ou ideológica, as nações procuram sem demora redescobrir e revalorizar os bens colectivos que são marcos da sua história-pátria e que antes estiveram postergados. Tenho viajado muito pelos países do Leste Europeu e um dos factos que mais me surpreenderam agradavelmente é a rapidez com que, depois da queda do Muro de Berlim, aqueles países voltaram ao culto dos seus valores ancestrais, banindo os símbolos do domínio comunista.
Todos eles iniciaram um processo febril de restauro e requalificação dos seus monumentos e centros históricos das cidades, em que o mais desatento visitante se apercebe de um esforço de reafirmação política e de abertura ao exterior, entrosado num processo de revitalização da economia onde a indústria turística ocupa papel de primazia. Ora, um povo que assim procede tem consciência de que é preciso educar a sua juventude para a percepção consciente da realidade nacional, promovendo o fortalecimento da sua relação com o todo colectivo e incutindo-lhe um sentimento de responsabilização moral pelo património comum. Só assim se constrói a vivência real com a cidadania e se formam cidadãos responsáveis, orgulhosos dos seus valores e membros inteiros da comunidade. Um cidadão com semelhante formatação mental e social dará sem dúvida um político consciente da importância que merece o património cultural do seu país.
Temo que no nosso país a situação seja o inverso do traçado no quadro anterior, conforme vários sinais no-lo demonstram. E são nítidos e indesmentíveis os que provêm da nossa juventude, pela ignorância quase absoluta que denunciam sobre factos e figuras da história do seu país. Seria ocioso ir mais além, mas basta-me um pequeníssimo mostruário de um registo estatístico que, com determinado propósito, recolhi ouvindo cinco jovens universitários cabo-verdianos ao acaso. Um, de 28 anos, licenciado no Instituto Politécnico de Tomar, já a trabalhar no seu ofício, e em vias de regressar a S. Vicente, sua ilha natal. Os outros quatro, a concluir cursos superiores em Lisboa e no Porto, também naturais de S. Vicente. Constatei que nenhum atribuía qualquer significado à Casa Adriana, considerando-a uma “casa antiga a cair aos bocados lá para os lados de Fonte Doutor”, isto é, um “pardieiro”, como se exprimiu um comentarista em artigo anterior sobre este tema. Nenhum dos jovens sabia quem foi o Dr. Adriano Duarte Silva ou se lembrava sequer de ouvir falar no nome. Culpa dos jovens? Que o leitor faça o seu juízo.
E aqui entramos no busílis da questão. Falar em defesa do Património Cultural implica, por conseguinte, falar em Educação para o Património, porque em boa verdade ninguém pode amar, valorizar e proteger aquilo que ignora. A Educação para o Património tem de ser iniciada e de uma forma interdisciplinar e transversal a todo o tecido social. Como primeira prioridade, nas escolas, mas também, e impreterivelmente, nas famílias, nos clubes, nas associações cívicas, nas bibliotecas, enfim, em todos os espaços e ocasiões onde seja possível levar a informação aos munícipes, explorando formas de transmissão do conhecimento que conciliem a textualidade com a oralidade.
A Educação assim tencionada define-se com um processo contínuo e sistemático de esclarecimento e formação, em ordem a desenvolver nos jovens e nos adultos o sentimento de pertença mútua e de identificação com a herança cultural do país. Tal Educação deverá constituir uma das fontes primárias do conhecimento e enriquecimento individual e colectivo, forjando laços que, uma vez consolidados, tornarão pouco provável que um edifício como a Casa Adriana seja ameaçada de demolição. A Educação permite construir os alicerces de uma cidadania consciente e esclarecida, e esta só pode gerar amor e devoção pelos valores comuns.
Tomar, 2 de Abril de 2010
Adriano Miranda Lima
Sem comentários:
Enviar um comentário