A cultura de um povo é toda a sua memória.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Em defesa da «Casa Adriana» e do demais património cultural da Nação - Nuno Ferro Marques

Pretendemos demonstrar o interesse cultural da Casa Dr. Jacques de Salis di Celerina / Casa Dr. Adriano Duarte Silva, em Mindelo (abreviadamente, Casa Adriana), o interesse cultural do conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Liceu Velho, Casa Adriana, Casa Pedro e Etelvina Neves e o interesse cultural do demais património envolvente, bem como demonstrar que a decisão de a Câmara Municipal de São Vicente (CMSV) e o Governo encomendarem a demolição da Casa Adriana, ademais, com os nossos recursos, é no mínimo uma decisão inculta.
Em defesa da «Casa Adriana» e do demais património cultural da Nação

Não possuímos qualquer obrigação, pública ou política, remunerada ou não remunerada, de avançar com quaisquer projectos para a Casa Adriana, sejam eles projectos classificação do património cultural ou projectos de arquitectura alternativos. Assim mesmo, fazemos votos para que o trabalho revelado por estas linhas possa impulsionar outros contributos cívicos, de forma mais organizada, mas também, mais e melhores iniciativas administrativas, políticas e técnicas.

O presente contributo trata de chamar a atenção para a classificação do património cultural, nomeadamente, para a metodologia que passa pela demonstração dos valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade, nos domínios histórico, arquitectónico e social (entre outros); Trata, também, de propor o grau de interesse público para o conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Liceu Velho, Casa Adriana, Casa Pedro e Etelvina Neves e o demais património cultural envolvente; E trata, ainda, de fazer reverter a decisão da CMSV e do Governo encomendarem a demolição, aliás, com os nossos recursos, da Casa Adriana, a CMSV, porque assim o autorizou, enquanto órgão local, mediante confrangedora omissão, em matéria de planeamento urbanístico, e mediante emissão de planta de localização, ou equivalente, ignorando, de forma flagrante, o património cultural; o Governo, porque pretende construir nesse local quando nem sequer faltam, nem podem faltar alternativas; e a CMSV e o Governo, porque têm feito deste imóvel uma moeda de troca de terrenos entre si, sem cuidar que se encontravam perante um exemplar do património cultural e que dessas instituições seria de se esperar mais e melhor, nomeadamente, o cumprimento da lei, em matéria de conservação do património do Município e do Estado, aliás, exigido aos cidadãos.

Se atendermos à legislação cabo-verdiana, aliás, antiga de duas décadas, e desajustada (sem prejuízo de alguma legislação mais recente mas pontual e específica para a Cidade Velha), excluindo o que à partida não parece aplicável ao conjunto do Palácio, Pracinha do Liceu, Liceu Velho, Casa Adriana, Casa Pedro e Etelvina Neves e o demais património cultural envolvente, e reportando-nos, concretamente, aos bens imóveis de interesse cultural, nomeadamente, obras de arquitectura, composições importantes ou criações mais modestas, notáveis pelo seu interesse histórico ou social, incluindo as instalações ou elementos decorativos que fazem parte integrante destas obras, e/ou agrupamentos arquitectónicos urbanos de suficiente coesão, de modo a poderem ser delimitados geograficamente, e notáveis, simultaneamente, pela sua unidade ou integração na paisagem, e pelo seu interesse histórico e social, defendemos que o Palácio, a Pracinha do Liceu, o Liceu Velho, a Casa Adriana, e a Casa Pedro e Etelvina Neves, bem como o demais património cultural envolvente, merecem ser classificados, individual e/ou colectivamente, como Monumentos históricos e/ou Conjuntos arquitectónicos, nos termos da Lei n.º 102/III/90, de 29 de Dezembro, que estabelece as bases do património cultural.

Se, para além da legislação nacional, adoptarmos, como referência, a legislação portuguesa, bem mais actual e desenvolvida, para este conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Liceu Velho, Casa Adriana, Casa Pedro e Etelvina Neves e o demais património envolvente, defendemos que estes exemplares do património cultural, sem prejuízo do seu interesse municipal e/ou nacional, podem ser classificados com o grau de interesse público, nos termos do Artigo 3.º (Graduação do interesse cultural e classificação) e Artigo 21.º (Interesse cultural) do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de Outubro, que estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime jurídico das zonas de protecção e do plano de pormenor de salvaguarda e nos termos do Artigo 15.º (Categorias de bens) e do Artigo 17.º (Critérios genéricos de apreciação) da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, que estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural.

Reportando-nos concretamente aos bens imóveis de interesse cultural, e excluindo mais uma vez o que à partida não parece aplicável ao conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Liceu Velho, Casa Adriana, Casa Pedro e Etelvina Neves e o demais património cultural envolvente, resumir-se-iam em três, os passos acima enunciados:

1. Um bem considera-se de interesse público quando a respectiva protecção e valorização represente um valor cultural de importância nacional, mas para o qual o regime de protecção inerente à classificação como de interesse nacional se mostre desproporcionado. Na instrução do procedimento de classificação será verificado o interesse cultural relevante do bem imóvel, designadamente, nos domínios histórico, arquitectónico e social. O interesse cultural relevante documentado, em cada domínio, deverá demonstrar, separada ou conjuntamente, valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade.

2. O grau de interesse terá de implicar algum ou alguns dos seguintes critérios genéricos de apreciação: O interesse do bem como testemunho simbólico; O interesse do bem como testemunho notável de vivências ou factos históricos; A concepção arquitectónica e urbanística; A extensão do bem e o que nela se reflecte do ponto de vista da memória colectiva; A importância do bem do ponto de vista da investigação histórica ou científica (ciências sociais); As circunstâncias susceptíveis de acarretarem diminuição ou perda da perenidade ou da integridade do bem.

3. De notar que o grau de interesse deverá ser justificada em função do valor cultural do bem imóvel na perspectiva da sua protecção e valorização.

Ora, a sociedade civil cabo-verdiana, de uma forma, ora mais espontânea, ora mais organizada *, tem demonstrado o interesse cultural da Casa Adriana nos domínios histórico, arquitectónico e social, tem demonstrado, por múltiplas formas, os seus valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade, e se tanto fosse preciso assinalar, tem demonstrado, claramente, o interesse da Casa Adriana como testemunho simbólico, como testemunho notável de vivências ou factos históricos, o interesse da sua concepção arquitectónica e urbanística, a extensão da Casa Adriana e o que nela se reflecte do ponto de vista da memória colectiva, a importância da Casa Adriana do ponto de vista da investigação histórica, bem como as circunstâncias susceptíveis de acarretarem diminuição ou perda da perenidade ou da integridade da Casa Adriana, sendo certo, que a classificação de um exemplar de património cultural não obriga a demonstração exaustiva de todos aqueles valores e de todos aqueles critérios de apreciação.

Se mais do que já foi dito é necessário para se proceder à classificação da Casa Adriana, contudo, o que já foi dito é mais do que suficiente para definitivamente colocar-se cobro à anunciada demolição da Casa Adriana. Sabe-se que a Casa Adriana já estava construída em 1870, o que lhe dá pelo menos a idade de 140 anos. Em qualquer parte do mundo civilizado, a idade de 100 anos de um exemplar do património cultural, nomeadamente, do património arquitectónico, por si só, já é motivo bastante para fazer parar qualquer veleidade de demolição, facto que em Cabo Verde parece ser ignorado pela Presidente da CMSV e pelos Ministros de Estado, das Infra-estruturas e da Saúde. E se em melhor estado a Casa Adriana não se encontra, a responsabilidade por mais esse facto, só à CMSV e ao Governo pode e deve ser assacada, em vez de se tentar demolir os vestígios do descaso dessas instituições para com as suas responsabilidades sobre o património do Município e do Estado.

Apesar de não possuirmos qualquer obrigação, pública ou política, remunerada ou não, de avançar com quaisquer projectos para a Casa Adriana, sejam eles projectos classificação do património cultural ou com projectos de arquitectura alternativos, assim mesmo, podemos deixar a nossa visão, aliás, uma visão compartilhada, e que de resto pode ser complementar de eventuais visões do Governo e/ou da CMSV, em matéria de planeamento urbanístico, de ordenamento do território, desenvolvimento turístico, e até, em matéria de ensino superior, ciência e cultura.

Com efeito, fazemos parte dos vários movimentos de cidadãos que, no país, na diáspora, e conjuntamente, no país e na diáspora, concebem para o conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Casa Adriana e Casa Pedro e Etelvina Neves e os demais edifícios dos mesmos quarteirões, um núcleo urbano dedicado ao ensino superior, ciência e cultura, que integre um museu, um centro de artes e/ou um palácio de cultura, sem prejuízo da autonomia dos vários equipamentos, residências universitárias para docentes e discentes, um núcleo viabilizado através de parcerias público-privadas que contemple incentivos aos moradores desta zona que queiram reabilitar os seus edifícios para acolher estudantes nacionais e estrangeiros, enfim, um núcleo urbano articulado com outros equipamentos na ilha, no arquipélago e no mundo. É fundamental, pois, que este conjunto Palácio, Pracinha do Liceu, Casa Adriana e Casa Pedro e Etelvina Neves e os demais edifícios dos mesmos quarteirões, se mantenha coeso, e que a visão para cada uma destes elementos seja, logicamente, subordinada ao conjunto.

Ao contrário do argumento, se assim se pode chamar, em que se refugiam a CMSV e o Governo, não existe qualquer relação culta entre a construção de nova Delegacia de Saúde e a demolição do património cultural cabo-verdiano, a Casa Adriana. Tanto assim é que já existe uma Delegacia de Saúde em Mindelo, aliás, maior e melhor do que a própria Delegacia da capital que serve um número incomparavelmente superior de utentes. A Presidente da CMSV, o Primeiro-Ministro e o próprio Presidente da Assembleia Nacional já foram alertados, várias vezes, para a petição em defesa da Casa Adriana que deu entrada na Assembleia Nacional em Janeiro de 2010, e não podem continuar a ignorar impunemente o Direito de petição, garantido por lei e pela Constituição, nem poderão ser cúmplices impunes do anunciado atentado contra o Estado de direito, com a decisão de encomendar, aliás, com os nossos recursos, a demolição do centenário património cultural mindelense, a Casa Adriana, antes devem atentar às suas responsabilidades e garantir o efectivo funcionamento das instituições da República.

Verdade seja dita, a insistência em levar para a frente a demolição da Casa Adriana não deixa de ser um atestado de incompetência, em matéria de planeamento urbanístico, de ordenamento do território e desenvolvimento turístico, mas também, lamentavelmente, em matéria de ensino superior, ciência e cultura, inaceitável, tanto mais que, para além da cidadania, no país, passando por São Vicente, Santiago, Fogo, etc., e na diáspora, passando pelos Estados Unidos da América, França, Itália, Portugal, Macau, etc., o próprio Presidente da República, o próprio (ex) Ministro da Cultura e o próprio (ex) Presidente do IIPC – Instituto de Investigação e Património Cultural, bem como vários deputados municipais e nacionais, entre muitos outros titulares de cargos públicos e políticos, sem esquecer as valiosas propostas do 1º SIRUM – Seminário Internacional de Reabilitação Urbana de Mindelo, um encontro entre várias Universidades de Cabo Verde, Brasil, Itália e Portugal, nomeadamente, Escolas e Faculdades de Artes e de Arquitectura, inclusivamente, para esta zona central de Mindelo, todas estas instituições cívicas, políticas, públicas e universitárias já se manifestaram, francamente, em favor da defesa da Casa Adriana. E convém lembrar ainda que tal decisão da CMSV e do Governo vem descarregando sobre a sociedade civil um ónus violento e contraproducente de defesa pelo património, constitucionalmente garantida, pelo que a CMSV e o Governo devem abster-se, quanto antes, de atitude tão pouco urbana e tão pouco edificante.

Devem, pois, a CMSV e o Governo, rever a sua inculta decisão e disso informar, quanto antes, a cidadania, no país e na diáspora, para que esta possa ser dispensada do ónus assaz violento de ter de corrigir, sem qualquer remuneração, os erros e as omissões dos titulares dos titulares de cargos públicos e políticos, remunerados com os nossos recursos para nos servirem. A CMSV e o Governo são obrigados, por lei, a questionar e a demonstrar, por si só, o interesse cultural da Casa Adriana, o que sintomática e inegavelmente tentam furtar-se a fazer. A omissão das suas obrigações não confere nem à CMSV, nem ao Governo, o direito de agirem como se de organizações criminosas se tratassem, nem a ineficácia da Justiça deve servir de pretexto para mais e mais abuso de poder e atentados contra a urbanidade. Até lá, os cidadãos de Cabo Verde tudo continuarão a fazer para cortar passo à incompetência dos titulares de cargos públicos e políticos da CMSV e do Governo, em matéria de poder local e poder central e, compreensivelmente, a cada dia, elevarão a sua voz.

Finalmente, procurando evitar males piores, gostaríamos de lembrar que a CMSV e o Governo vêm dando azo a que o povo de Cabo Verde se veja obrigado ao exercício de outro direito constitucionalmente previsto: «É reconhecido a todos os cidadãos o direito de não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilícita, quando não seja possível recorrer à autoridade pública» (Artigo 19º - Direito de resistência). Historicamente, é sabido que o povo de São Vicente sempre fez uso desse direito universal.
Imagens NFM – 2010
Nuno Ferro Marques

2 comentários:

  1. Este um artigo sobre a problemática do património, desta vez vem incidir sobre uma questão importante que é a classificação das peças do nosso legado histórico e cultural. Sem essa salvaguarda qualquer edifício histórico fica votado às vontades daqueles que, insensíveis ao valor dos testemunhos do passado, vão destruindo o pouco que temos. Vale a pena salvaguardar e dar a conhecer a nossa herança comum, o nosso passado e a nossa história. Força a todos.

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  2. À semelhança de outras intervenções anteriores, o arquitecto Nuno Marques volta a abordar a problemática do património arquitectónico e histórico da cidade de Mindelo e o criminoso desprezo a que ele tem sido votado pelas autoridades públicas.
    Tendo no epicentro da questão a ameaça de demolição que incompreensivelmente paira sobre a casa onde viveu o Dr. Adriano Duarte Silva, o autor vai mais longe e apresenta-nos uma perspectiva sobre a classificação, a valorização e o aproveitamento público de outros patrimónios da zona envolvente, baseando-se na legislação cabo-verdiana e portuguesa.
    É sumamente importante e urgente que a sociedade civil cabo-verdiana se interesse por este problema, que intervenha na imprensa e nos blogues, que aflua a reuniões públicas onde estas questões se esclareçam e se discutam. Caso contrário, se continuarmos a assistir à indiferença e desleixo com que as autoridades públicas lidam com estas questões, o dia chegará em que o bom povo de Mindelo acorda e não reconhece os traços da sua própria identidade. Acorda mas já será demasiado tarde para perceber que a sua cidade é um amontoado de betão, desconexo e sem estética e morfologia, sem memória e sem identidade.

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