SALVEM A CASA DO DOUTOR ADRIANO!
Se é verdadeiro o que eu li, considero que não é atitude digna de uma autarquia a nota que a Câmara Municipal de S. Vicente difundiu sobre a polémica à volta da “Casa do Dr. Adriano Duarte Silva, execrando os cidadãos que se movimentaram com o único intuito de evitar a demolição do secular edifício. Na nota, intitulada "Os Falsos Guardiões da Cidade do Mindelo", a Câmara Municipal de São Vicente diz não aceitar a continuação de "uma estéril e inútil polémica sobre o destino a ser dado à casa promovida por um punhado de pessoas armadas em defensores do património mindelense apenas quando lhes interessa". Para a autarquia, essas pessoas foram movidas por " interesses partidários e obscuros e que têm tentado travar tudo o que de moderno se pretende para São Vicente".
Reagindo na parte que me assiste como um dos peticionários, acho que não é curial nem é razoável que uma Câmara eleita democraticamente, e portanto com razões para se sentir legitimada no seu mando, se manifeste assim tão atrabiliariamente e tão vesga contra cidadãos que, em seu pleno direito de cidadania, entenderam movimentar-se para evitar a eliminação do que consideram um património cultural da sua cidade. Palavras tão descabidas como duras e injuriosas não deviam, de facto, pertencer ao léxico de uma Câmara da qual se espera, pelo contrário, um tratamento sempre digno, tolerante e respeitoso para com todos os munícipes, mesmo os que ousam pensar de forma diferente e exprimir publicamente o seu sentimento e o seu ponto de vista.
Claro que este assunto é susceptível de dividir as opiniões, como qualquer outro, mas não é admissível que a autoridade autárquica pense e decida sobre o património cultural da cidade segundo o seu único e exclusivo arbítrio, fazendo tábua rasa da opinião pública. Ninguém é detentor da verdade absoluta. Nem a Câmara, nem os cidadãos que se mobilizaram tendo como único móbil a preservação do edifício.
A busca de boas e justas soluções não pode basear-se numa visão unilateral da realidade, assim como não pode ignorar que a procura da verdade reside numa linha oscilante de conjecturas e falibilidade. É isto que, aliás, nos dizem os sábios da epistemologia, desde os antigos Xenófanes e Sócrates aos posteriores Kant e Karl Potter. Para mais, esta constatação é de manifesta evidência quando o que está em causa é uma matéria que, pela sua especial delicadeza, não pode entrar no lote dos valores normais contabilizáveis, visto que se prende com uma questão basilar de memória e identidade. E, por isso, não é curial que fique apenas a mercê de quem passa transitoriamente pelo poder, e não é tolerável que se exclua a auscultação dos munícipes e, mais ainda, se menospreze de forma ostensiva um legítimo acto de cidadania, tratando-o como uma vulgar intromissão na gestão corrente da autarquia.
Veja-se que a construção do edifício em causa remonta ao último quartel do século XIX, numa época em que estava ainda a forjar-se a construção e a afirmação da entidade espiritual do Mindelo. O edifício, ainda que revestindo uma monumentalidade apenas dimensionada à nossa urbe, possui singularidade arquitectónica que imprime, só por si, marca própria ao local em que se implanta, além de estabelecer, na sua génese, uma relação toponímica com o bairro próximo e, também, além da circunstância, porventura ainda mais relevante, de ser “A CASA DO DOUTOR ADRIANO”, designação esta que prevalece e tem real força anímica, quer queiramos ou não. Não é em vão que a memória de qualquer cidade incorpora irrecusavelmente a sua arquitectura mais antiga e mais significativa, por revestir as marcas distintivas do seu nascimento e da sua emancipação.
E aqui chegados é que o campo se divide, ou seja, o dos conceitos e dos sentimentos. Uns sentem a cidade na sua inteireza material mas sobretudo espiritual, e outros porventura serão mais sensíveis ao que é contingente e efémero porque enche momentaneamente o olho e alimenta a ilusão de progresso e desenvolvimento. No entanto, a memória da nossa cidade, sem ter de ser um repositório de vivências homogéneas, é sentida e vivida por aqueles que nela residem e por todos quantos o destino obrigou a viver fora, e bem numerosos são.
Cada um sente as coisas da vida à medida dos laços que cria e das intuições espirituais que estimula, mas sucede até que quem vive fora interioriza de forma especialmente intensa o sentimento de pertença, porque é precisamente quem, talvez, mais impulso anímico recolhe de referências materiais que, na sua ingenuidade, julga imutáveis e invioláveis, não suportando o luto da sua perda ou a ameaça da sua delapidação.
Emoldurados pelo Monte Cara, a Baía do Porto Grande e o Monte Verde, temos o Fortim, a antiga Capitania, o edifício do Palácio, a antiga Alfândega, a rua de Lisboa, a Casa do Dr. Adriano, entre outras referências materiais que preenchem o substrato das nossas lembranças e em que ancoram as saudades que se acumulam na ausência de quem sente a presença do torrão natal no núcleo das suas vidas e como algo quase sobrenatural. É este o busílis da questão e não qualquer outra motivação espúria, como se atreveu a insinuar a Câmara Municipal. E é o grau de intensidade com que se cultiva a memória que origina a separação de águas entre o que é contingente e o que é eterno, noutras palavras, entre o que é satisfação ilusória e o que é plenitude do sentimento de mística.
Assim, convenhamos que quem sente verdadeiramente as ofensas tem de rejeitar a insinuação maldosa de ter sido movido por " interesses partidários e obscuros e que tem tentado travar tudo o que de moderno se pretende para São Vicente". Não é seguramente o meu caso nem de outros tantos que conheço e assinaram a petição. Vivo fora de Cabo Verde desde 1963, estou perfeitamente equidistante em termos políticos e nada me liga a qualquer interesse material em Cabo Verde a não ser as relações familiares e de amizade, além da memória que afectuosamente cultivo como outro qualquer filho da terra.
O que verdadeiramente nos mobiliza é a crença de que se cometerá um crime de lesa-cultura se for demolido o prédio em questão e se não lhe for dado um uso que, em minha opinião, está irremediavelmente comprometido com a história da cidade e dessa notabilíssima figura nacional que foi o Dr. Adriano Duarte Silva. Um Museu é o destino mais consentâneo com a natureza arquitectónica e a localização topográfica do edifício, e significa, sobretudo, um preito de homenagem às figuras que nele viveram, com especial destaque para o nosso Dr. Adriano. Creio que é isto que se faria em qualquer sociedade que preze os valores da sua história e cultura, onde o fortalecimento da consciência cívica se estribe em valores comuns e imutáveis.
A Câmara diz que “não dispõe de nenhum espaço digno para a construção da Delegacia de Saúde e que não se responsabiliza pela eventual inviabilidade do projecto”. Então respondo que uma Delegacia de Saúde não precisa comprazer-se primacialmente com requisitos de dignidade mas sobretudo com condições de funcionalidade e de capacidade de resposta. Mas, se estiver de facto em causa a viabilidade do projecto, que pode ser redireccionado para outro espaço, então é tempo de o Governo ter uma palavra decisiva sobre esta polémica, empenhando necessariamente os responsáveis pela política da cultura. Pois se a autarquia não valoriza o seu próprio património, que o poder central intervenha e dirima o conflito salvaguardando um valor sanvicentino que não deixa de ser do todo cabo-verdiano.
Repare-se que, na era em que vivemos, a valorização da memória das cidades é uma preocupação momentosa na generalidade das sociedades do mundo, tendência que demonstra uma ruptura com conceitos, valores e atitudes que antes vigoravam. Na verdade, houve um tempo em que se promovia o culto do que era novo e representava aposta visível e entusiasmante no futuro, derrogando-se os vestígios materiais do passado que pudessem ser interpretados como retrocesso, saudosismo ou travão ao progresso.
Hoje, ao contrário, avulta a consciência de que a vertigem da chamada modernidade tem custos imprevisíveis e inquietantes, dos quais a delapidação de valores identitários e a ameaça ecológica serão os mais perniciosos. Não é por acaso que em todas as cidades do mundo se verifica hoje uma aposta no restauro, na preservação e na revalorização das heranças do passado. A ideia é recolocar o cidadão no coração da cidade, enfatizando os valores de pertença mútua e o entrosamento com a comunidade, o que só é possível salvaguardando a memória colectiva.
Com esta minha intervenção, não estou a agir por " interesses partidários e obscuros e que tenho tentado travar tudo o que de moderno se pretende para São Vicente”. Aliás, penso que esta Câmara Municipal está a fazer um bom trabalho, com empenhamento e dinâmica, como o atestam várias obras de recuperação urbana realizadas, mas no caso particular deste património cultural não está a proceder com o melhor critério. Por isso, termino como este apelo lancinante: SALVEM A CASA DO DOUTOR ADRIANO!
Quarteira, 7 de Março de 2010
Adriano Miranda Lima
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