A cultura de um povo é toda a sua memória.


quinta-feira, 27 de maio de 2010

CLASSIFICAÇÃO DA "CASA ADRIANA"

Justificação histórica da proposta de classificação da ex-residência da família Duarte Silva no Mindelo como património histórico-arquitectónico da República de Cabo Verde.
Ângela Sofia Benoliel Coutinho* com a colaboração de João Nobre de Oliveira

 Apesar da República de Cabo Verde ser um dos países africanos cuja História Contemporânea foi até agora menos estudada, é sabido pelos historiadores que, desde o advento da Monarquia Constitucional em Portugal, em 1822, foi colocada e largamente debatida a questão do estatuto das populações das colónias do então Império português, assim como a autonomia política das mesmas.

Os republicanos cabo-verdianos pensaram que essa questão seria resolvida com a implantação da República (1910), mas as suas expectativas foram goradas e, mais tarde, definitivamente frustradas com o regime do Estado Novo (1933), que centralizou os poderes de decisão na metrópole, diminuindo até a liberdade de acção dos governadores.

E nunca é demais recordar que este mesmo regime reforçou nos anos trinta as leis discriminatórias entre os naturais das colónias e os da então metrópole, leis que transformavam o próprio Dr. Adriano em “português de segunda”.

Concomitantemente, o poder económico das famílias proprietárias cabo-verdianas foi diminuindo ao longo do século XIX, tendo surgido uma nova elite comercial na cidade do Mindelo, que a partir do último quartel desse século, tornou-se o pólo económico, e sobretudo, financeiro, mais dinâmico e importante do arquipélago.

No entanto, foi durante o século XX, no período que decorre até a Segunda Guerra Mundial, com as secas dos anos 1901-04, 20 a 24 e 43 e 47, que muitos proprietários e produtores agrícolas cabo-verdianos viram chegar a sua falência, com a correspondente decadência social da sua classe, devido, entre outros factores, à política de hipotecas levada a cabo pelo Banco Nacional Ultramarino.

Por sua vez, a elite comercial do arquipélago, que ficara fortemente abalada com a crise económica dos anos trinta, a mesma crise que levaria aos protestos de 1934 no Mindelo com o saque de armazéns por populares, quando esta elite comercial lutava para sobreviver à crise terá sofrido um forte revés na sua luta com a criação, em 1943, da SAGA, empresa que passou a deter o monopólio da importação e exportação no arquipélago, impedindo assim a actividade empresarial destes comerciantes, e conduzindo à falência de muitos deles.

É neste contexto geral que se deve entender a actuação da família Duarte Silva, ao longo da primeira metade do século XX em Cabo Verde.

Tratando-se de uma família de proprietários e comerciantes originários de Santo Antão, Ribeira Grande, terão representado a luta que esta elite económica travou com vista à sua sobrevivência e a uma maior autonomia política da então colónia, luta semelhante à que foi travada pelas elites africanas noutras colónias, tanto integradas no Império português como noutros.

Assim, na cidade do Mindelo, nos anos trinta, um dos irmãos, Daniel, era capitão dos Portos de Cabo Verde, e chegou a ser contra-almirante da Marinha Portuguesa, outro, Raul, era administrador do Concelho de S. Vicente e o dr. Adriano foi reitor do Liceu Gil Eanes e seria a partir de 1946 deputado por Cabo Verde na Assembleia da República Portuguesa, onde, logo numa das suas primeiras intervenções atacou as leis discriminatórias relembrando o caso da Alemanha Nazi. Nessa altura, dizia-se que a família Duarte Silva mandava em S. Vicente, devido à importância dos cargos e do consequente poder de decisão que detinham estes três irmãos. Tanto mais que os seus meios-irmãos, Manuel Ribeiro d’Almeida, mais conhecido por “Leça” Ribeiro e Raul do Rosário Ribeiro tiveram um papel fundamental na História da Imprensa Cabo-Verdiana, na fundação e direcção do jornal Notícias de Cabo Verde, o jornal de iniciativa privada de maior longevidade na época colonial em Cabo Verde. De entre os vários colaboradores deste jornal, conta-se Juvenal Cabral, que em dado momento foi o correspondente na ilha de Santiago. Manuel Ribeiro d’Almeida, industrial, foi também presidente da Câmara de S. Vicente quando o seu irmão Daniel era capitão dos Portos de Cabo Verde.

Como professor e reitor do liceu, o dr. Adriano Duarte Silva, através das suas relações na metrópole, e juntamente com o seu primo Joaquim Duarte Silva, terá desempenhado um papel importante na sua reabertura, após o encerramento ordenado no ano de 1937.

Está já demonstrado que este liceu, que renasceu no mesmo ano com o nome de ‘Gil Eanes’, foi o local onde estudaram todos os futuros dirigentes do movimento independentista e a esmagadora maioria dos membros do governo em Cabo Verde durante os quinze primeiros anos após a independência. Foi também onde estudou a grande maioria dos escritores e até compositores que se notabilizaram em Cabo Verde e no estrangeiro, da última fase do período colonial até às primeiras décadas do pós-independência. Um deles, o celebérrimo compositor B. Lèza, foi protegido pelo dr. Adriano Duarte Silva, a dada altura da sua vida.

De entre as lutas políticas travadas pelo dr. Adriano, é de salientar a que foi feita em prol da obtenção do estatuto de adjacência para Cabo Verde, que permitiria viabilizar os investimentos em infra-estruturas de que a então colónia necessitava para o desenvolvimento da sua economia. Com efeito, o estatuto de colónia impossibilitava, por definição, que a metrópole atribuísse fundos avultados para investimentos, uma vez que era suposto que as colónias em geral gerassem rendimentos para as respectivas metrópoles e que não dessem quaisquer gastos.

O facto desta sua luta não ter sido bem sucedida terá feito com que muitos cabo-verdianos atentos a estas questões compreendessem que a classe política portuguesa, no seu conjunto, não estava interessada nesta proposta feita desde há muito, e tê-los-á afastado definitivamente de um qualquer projecto de uma maior autonomia no quadro do Império português. A geração seguinte, num contexto histórico de queda dos Impérios coloniais europeus e de independência da grande maioria dos países africanos, pôde avançar com um projecto concreto de luta pela independência nacional de Cabo Verde.

A residência da família Duarte Silva no Mindelo, uma das mais antigas na cidade, já que a sua construção pelo dr. Salis é anterior a 1870, mereceria só por este facto a classificação como património histórico municipal. No entanto, ela representa, sobretudo pela escadaria que foi mandada construir pelo dr. Adriano Duarte Silva, a luta travada por essa elite autóctone contra o poder destrutivo exercido pela metrópole, num contexto histórico em que a luta pela independência não era sequer concretamente pensada pelas elites das colónias do continente africano no seu conjunto. A imponência que esta residência e as suas escadarias conseguem transmitir, encontrando-se relativamente perto do Palácio do Governador, representa o desafio lançado por esta elite ao poder metropolitano, representando também o poder que almejava ter ou que, de facto, deteve, nesta última fase do período colonial e antes da sua derradeira decadência, numa atitude de confronto com o poder colonial que terá inspirado e até formado as gerações seguintes.

Por este facto, é nosso entender que esta residência merece a classificação de património histórico nacional de Cabo Verde, ao mesmo título que os palácios dos governadores em Cabo Verde, na Praia e no Mindelo.

De entre os muitos aspectos que será necessário aprofundar sobre esta época e sobre a vida desta e doutras personagens da nossa História, através de uma pesquisa histórica rigorosa e de uma análise crítica e sistematizada de todas as fontes disponíveis, há a relação entre o dr. Adriano Duarte Silva e o seu primo Martinho Nobre de Mello, um dos intelectuais pan-africanistas mais prestigiados entre a elite africana em Lisboa durante a Primeira República. Está também ainda por estudar a sua relação com Amílcar Cabral, aluno e primeiro bolseiro do Liceu Gil Eanes na metrópole, e que teve a nota final de todo invulgar de 20 valores na disciplina de “Organização Política”, normalmente leccionada pelo dr. Adriano Duarte Silva.

Por fim, parece-nos útil sublinhar o facto de que o edifício em causa corresponde aos valores de memória, raridade, antiguidade e singularidade exigíveis para a sua classificação como património de interesse público.

Memória, pois remete-nos para essa derradeira luta perdida de uma maior autonomia das elites locais, que terá levado a geração seguinte a procurar desde logo, uma solução política diferente para os problemas com que a sociedade colonial cabo-verdiana se debatia, e que têm sido enfrentados, e em grande medida, ultrapassados na caminhada do país independente. Representa, pois, um marco na nossa trajectória colectiva como nação.

Raridade, pois raras são as casas senhoriais tão imponentes na cidade do Mindelo, na altura, a maior cidade do arquipélago e antiguidade, já que se trata de uma das suas construções mais antigas.

Por fim, singularidade, pois trata-se do único edifício que representa tão fortemente a luta pela afirmação dos cabo-verdianos num contexto sócio-político tão adverso como foi o da última fase do período colonial, sob o regime salazarista, com as fomes dos anos ’40, a emigração em massa e, por fim, a guerra, que marcaram de forma indelével a nossa História colectiva.
___________
Notas:
Imagens NFM – 2010
1. Casa Adriana
2. Palácio; Pracinha do Liceu; Liceu Velho; Casa Adriana; e Casa Pedro e Etelvina Neves (Google)
3. Escadarias da Casa Adriana
4. Liceu Velho
5. Palácio
Para mais informações, consulte http://cultura-adriana.blogspot.com/
* Investigadora no CESNOVA – Universidade Nova de Lisboa. Doutora em História de África
Contemporânea, Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne / Investigadora do STORG – Cabo Verde

7 comentários:

  1. Belíssimo texto, ó Ângela! Que sirva de colírio a quem não vê...
    Abraço fraterno
    Virgílio

    ResponderEliminar
  2. Parabens Ângela e João Oliveira, os políticos na nossa terra precisam de refrescar a memória com a História, e este artigo de investigação é um excelente contributo.

    ResponderEliminar
  3. Li com especial interesse este artigo da Ângela Coutinho, que nos oferece novas perspectivas para olhar e interpretar, com rigor científico, a história contemporânea de Cabo Verde.
    É notável a forma como a autora analisa a sucessão e o encadeamento de factos da história portuguesa a partir do século XIX, estabelecendo entre uns e outros relações de causalidade que explicam o definhamento contínuo de Cabo Verde e o consequente e progressivo despertar de consciência que haveria de conduzir à independência nacional. É no auge do Estado Novo (ditadura de Salazar) que emerge a figura do Dr. Adriano Duarte Silva e se afirma como paladino do seu povo, não se coibindo de usar verbo duro, mas certeiro, para denunciar a esquecimento e o desprezo a que estava votado o povo que representava como deputado nacional. As gerações que nasceram e vivem em democracia não sabem o que era ir contra as conveniências da assembleia nacional sob a batuta de Salazar.
    Numa altura em que lutamos para a preservação da casa em que viveu esse Grande Homem, eis que a autora nos demonstra, com argumentos lógicos e irrefutáveis, que está por escrever a história contemporânea de Cabo Verde. Mas escrevê-la com o rigor científico já exigível depois do assentar da poeira que se levantou com a proclamação da independência, altura em que algumas consciências ficaram tão obnubiladas que não souberam separar o trigo do joio e se permitiram a desonestidade intelectual e o desplante de embrulhar a memória do Dr. Adriano Duarte Silva no rótulo de fascista.
    Com este notável trabalho da Ângela Coutinho, sinto que ganha nova e acrescida importância o património cultural que é a Casa Adriana. Registo estas palavras do seu discurso: “A residência da família Duarte Silva no Mindelo, uma das mais antigas na cidade, já que a sua construção pelo dr. Salis é anterior a 1870, mereceria só por este facto a classificação como património histórico municipal. No entanto, ela representa, sobretudo pela escadaria que foi mandada construir pelo dr. Adriano Duarte Silva, a luta travada por essa elite autóctone contra o poder destrutivo exercido pela metrópole, num contexto histórico em que a luta pela independência não era sequer concretamente pensada pelas elites das colónias do continente africano no seu conjunto.” Ao terminar este meu comentário, sou assaltado por dois sentimentos antagónicos: por um lado, a grande satisfação que me dá reconhecer o valor e a clarividência intelectual e cívica desta conterrânea; por outro lado, a grande tristeza que é o saber que governa a minha cidade pessoas sem a devida altura cívica e cultural.

    ResponderEliminar
  4. Bom trabalho e os meus sinceros parabens á Angela e ao João Olvieira.

    ResponderEliminar
  5. Bom trabalho, e bastante elucidativo. Mostra o que alguns não vêem ou não querem ver ou que sabem mas optam por ignorar. Este marco histórico, pela sua memória, singularidade, raridade e antiguidade aqui apresentados, há muito que devia estar classificado e destinado a algo nobre no quadro da cultura caboverdeana. Felicito os autores por este trabalho que abre mais uma janela sobre a nossa história.

    ResponderEliminar