NÃO EXORCIZEM OS BONS ESPÍRITOS DO ALTO SOLARINE!
Costuma-se dizer que por vezes Deus escreve direito por linhas tortas, aforismo com que procuramos explicação para certos fenómenos da vida que nos surpreendem pelo inusitado do um desfecho benévolo, quando as expectativas apontavam para o contrário. Isto só vem a propósito porque estava eu a redigir o título em epígrafe quando tive dúvidas sobre a grafia oficial da palavra Solarine, nome por que é conhecido o bairro contíguo e sobranceiro a Fonte Cónego. Acontece que só muito recentemente, com a polémica deflagrada à volta da “Casa do Dr. Adriano”, é que fiquei a conhecer a origem de tal topónimo. Afinal, o construtor e primeiro morador daquela habitação foi o médico francês Jacques Sallis e Celerina, director do hospital civil/militar e também membro da comissão municipal de S. Vicente, cujo apelido ficou toponimicamente ligado ao bairro próximo.
Em honra àquele cidadão francês, o bairro recebeu, com efeito, o seu nome, que deve ter evoluído para Solarine, pelo fenómeno linguístico de corruptela. Se a memória não me falha, no meu tempo soava-me ao ouvido qualquer coisa parecida com Solarine, designação que certamente acabou, de facto, por consagrar-se na grafia e na pronúncia local.
Portanto, estamos todos agora sabedores de onde vem o nome e de que a construção desta Casa remonta ao último quartel do século XIX, o que atesta a sua idade secular e a sua condição de marco indelével da expansão da malha urbana do Mindelo. Fazendo contas ao tempo, temos, por conseguinte, um edifício de quase século e meio a marcar a paisagem citadina mindelense e a ser presença inconfundível na memória de sucessivas gerações, distinguindo-se pela sua traça nobre e singular numa zona caracterizada por um padrão arquitectónico mais ou menos homogéneo.
E, como se já não bastasse o seu valor intrínseco, o edifício viria a ganhar alta projecção simbólica mercê das figuras gradas que nele habitaram: desde logo, o seu construtor e primeiro morador, Jacques Sallis e Celerina, depois, e sucessivamente, o jurista Dr. Roberto Duarte Silva, o seu filho Dr. Adriano Duarte Silva e o médico Dr. José Duarte Fonseca. Por afinidade, diria que os mindelenses poderão invocar justas razões afectivas e familiares para também vincular o edifício à memória do eminente químico cabo-verdiano que foi o Dr. Roberto Duarte Silva, consagrado na nação francesa e galardoado com a Legião de Honra, uma vez que, sendo ele parente de dois dos seus mais distintos inquilinos, poder-se-ia associar a sua memória a essa referência material em S. Vicente. Se esta Casa for utilizada como o Museu da Cidade, como me parece apropriado, nela caberia, com merecida prioridade, um acervo de materiais evocativos das individualidades que nela viveram, com especial destaque para a ilustre figura da nossa história que é o Dr. Adriano Duarte Silva.
Ora, subentende-se, no meu intróito, que a ameaça que impende actualmente sobre o edifício acabou, em boa hora, por permitir a divulgação do seu historial. Dir-se-á então que há males que vêm por bem. E que feliz paradoxo, poder-se-á também exclamar, em género de desabafo reconfortante, não fosse a preocupação que nos suscita o perigo que corre este património histórico e arquitectónico. No entanto, o mesmo paradoxo tem subjacente a desconsoladora constatação de que os modelos que orientaram a nossa educação escolar são responsáveis por muita ignorância e lastimosa omissão.
Na suposta intenção de alargar o conhecimento da história pátria e da história universal, acaba-se muitas vezes por menosprezar o universo que rodeia o ser individual, talvez presumindo-o de menor importância ou dado adquirido, esquecendo-se, todavia, que a apreensão correcta da realidade próxima é a primeira condição para passos mais largos em direcção ao conhecimento do país como um todo e do mundo mais vasto. É, com efeito, espantoso que eu só aos 66 anos tome conhecimento da existência desse médico francês fundador de uma casa ao lado da qual eu transitava todos os dias no meu tempo de menino e moço. E não me considero nem alienado nem desinteressado do conhecimento e da leitura. Em todo o caso, “mea culpa”.
Por todas as razões que vêm sendo invocadas, é legítima a nossa estranheza face à insensibilidade cultural com que a Câmara Municipal de S. Vicente está a tratar este caso. A menos que os parcos recursos com que a edilidade gere a cidade a obrigue a estranhas equações em que os valores do espírito entram em relação promíscua com os mais vulgares factores de cálculo. É provável que sim, mas, enfim, não serei eu a abrir processos de intenção sobre actos de gestão que não conheço directamente.
Não sendo filiado nem simpatizante de qualquer partido, recuso que se descortine na minha dialéctica qualquer sintonia com esta ou aqueloutra força política. Nós, os que damos a cara por esta pugna para a salvaguarda do nosso património, não podemos, aliás, e isto é princípio basilar, incorrer em dois erros: cometer excessos de linguagem na execração à edilidade mindelense por esta sua errada ou discutível decisão; carrear ao nosso discurso qualquer conotação político-partidária. Sintamo-nos livres para agir apenas mandatados pelas nossas consciências e impulsionados pelas nossas convicções.
O arquitecto Nuno Ferro Marques, no seu último artigo, escreve:
“Concebemos para o conjunto Palácio, Liceu, Casa Adriano Duarte Silva, e demais edifícios dos mesmos quarteirões, um Campus Universitário que integre um Museu, um Centro de Artes e/ou um Palácio de Cultura, em parcerias público-privadas, sem esquecer Residências Universitárias para docentes e discentes e incentivos aos moradores da zona que queiram reabilitar os seus edifícios e acolher estudantes nacionais e estrangeiros, sem prejuízo da futura autonomia dos vários equipamentos, entre eles, o Museu, e sem prejuízo da articulação deste Campus Universitário com outros equipamentos na ilha, no arquipélago e no mundo, naturalmente. É fundamental que este conjunto Palácio, Liceu, Casa Adriano Duarte Silva, e demais edifícios dos mesmos quarteirões se mantenha coeso.”
Acho que os mindelenses deviam concordar e acarinhar esta ideia, já que a solução proposta enobrece o espaço e confere-lhe força anímica no sentido em que o torna um dos pilares importantes da memória e da reabilitação da cidade, ao passo que uma Delegacia de Saúde ou Centro de Saúde seria um corpo estranho nesse organismo e possivelmente gerador de disfunções várias, como aquelas que o arquitecto Nuno Ferro Marques apontou em anterior artigo. Dir-se-á que tudo isto é bonito, sim senhor, mas que o dinheiro é a mola de qualquer projecto. No entanto, para arranjar soluções é que servem os governantes e as parcerias público-privadas são uma via a explorar num caso desta natureza. Mais, como já foi aventado, a implementação da vertente cultural dos projectos poderá contar, se solicitada, com a ajuda quer de ONG quer do Governo francês. Neste último caso, não será negligenciável o efeito que terá no ego da nação francesa o facto de um seu cidadão – Jacques de Sallis Celerina – ter assentado arraiais na nossa terra e dado o seu contributo científico e humanístico a um território fora da influência geopolítica do seu país. Eis, portanto, uma forma possível de colher dividendos práticos buscando um mútuo entendimento e frutuosa cooperação, com a única finalidade de salvaguardar o testemunho da história e honrar quem merece. Naturalmente que à França não será indiferente, do mesmo modo, idêntica evocação e homenagem a Roberto Duarte Silva, cidadão cabo-verdiano que se sagrou cientista de renome naquele país. Tudo isto o Dr. José Fortes Lopes explicitou muito bem em seu recente artigo.
Abstraindo agora do cerne da nossa contenda, tenho de confessar que tenho dúvidas sobre o que a Câmara pretende construir no espaço da Casa do Dr. Adriano. Uma Delegacia de Saúde ou um Centro de Saúde? A Delegacia de Saúde, ou “Delegação”, como se preferir, é um órgão que, por definição genérica, não se destina a prestar cuidados médicos ou atendimento de enfermagem. É um órgão que, essencialmente, integra a autoridade de saúde (Delegado de Saúde), cuja função é promover a vigilância epidemiológica e a monitorização da saúde da população, garantindo a intervenção do Estado na defesa e promoção da saúde, na prevenção da doença e no controlo de factores de risco. Se a função é similar ao que se passa em Portugal e mesmo no Brasil, as atribuições são basicamente essas, conforme documentos que eu consultei. Sendo assim, se o que está mesmo em causa é uma Delegacia (ou Delegação) de Saúde, esta não necessita de um espaço tão sobredimensionado que não se descortine no Mindelo um edifício vago e remodelável com a largueza necessária, ou a construir de novo num qualquer lote de terreno disponível, sem ter de obrigar à demolição daquele que é um património da cidade.
Contudo, se o que está em causa é outra coisa diferente, um Centro de Saúde, cuja função é complementar à dos hospitais, por se destinar, regra geral, à prevenção, diagnóstico e prestação de cuidados médicos e atendimento de enfermagem, então o espaço para a sua implementação será necessariamente mais vasto e condizente com os requisitos que o arquitecto Nuno Ferro Marques menciona no seu aludido artigo de 08 de Março aqui publicado. Tais requisitos tornam de todo inconveniente a sua localização no terreno declivoso onde está a Casa do Dr. Adriano, pelas razões técnicas que o arquitecto invocou e explicou com clareza suficiente para um leigo perceber. Isto para não falar no atentado cívico que é demolir um património histórico e arquitectónico para construir em seu lugar um vulgar edifício destinado a uma servidão do Estado.
O nosso inconformismo justifica-se exactamente, e tão-só, pela incapacidade de o Poder perceber o crime de lesa cultura que está em vias de cometer se anular a “Casa do Dr. Adriano”. Agnóstico, para mim o entendimento da vida e do mundo é apenas aferido pelas leis da física, embora acredite que da História poderemos colher pulsões positivas que a razão não explica completamente porque é algo insondável o domínio das subjectividades humanas e da psicologia dos comportamentos colectivos. Os racionalistas cristãos, esses, acreditam na influência benévola dos espíritos do Astral Superior desde que, nós, os vivos assumamos elevados padrões comportamentais e utilizemos o livre arbítrio para transformar no bom sentido as nossas vidas. Então, preferindo agora dar crédito aos racionalistas cristãos, consola-nos a ideia assumida de que bons espíritos habitaram esta Casa e que nela deixaram fluidos positivos. Razão haverá, por isso, para lançarmos mais um alerta: NÃO EXORCIZEM OS BONS ESPÍRITOS DO ALTO SOLARINE!
Tomar, 14 de Março de 2010
Adriano Miranda Lima
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