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sábado, 29 de maio de 2010

É PRECISO UMA IDEIA E UM CONCEITO NOVO PARA A CIDADE DO MINDELO

Não deixa de ser paradoxal que no momento em que o governo anuncia, com pompa e circunstância, uma iniciativa que pretende resgatar ‘o que há de melhor no património cultural, artístico e turístico do país’ (ver notícia Sete Maravilhas de Cabo Verde - Liberal Online 4-3, 08:35h), incluindo referências do Mindelo, se insista na demolição da casa do Dr. Adriano Duarte Silva, desprezando uma petição que pretende justamente preservar uma parte do património cultural de Cabo Verde. Também não deixa de ser paradoxal o silêncio, quase total, dos homens das culturas, dos saberes e das políticas desta ilha e deste país? Por onde andam? Andam distraídos com coisas mais importantes?

Os defensores da demolição do prédio alegam que este não pode ser considerado património, pois não lhe atribuem valor nenhum. Efectivamente, o valor das coisas é subjectivo, está intrinsecamente associado a aquilo que um colectivo de pessoas, que transporta uma memória histórica, convencionou atribuir. É esse colectivo que define, subjectivamente, o valor das coisas, assim como o mercado define o valor de um património transaccionável, e é só dentro deste contexto que se pode falar de valor. Pois é assim que, subjectivamente, o Palácio do Governo, o Liceu Velho, e a réplica da Torre de Belém possuem valores históricos e patrimoniais, atribuídos pelos mindelenses, dentro do contexto da Ilha. É possível que para pessoas nascidas noutras ilhas ou para um estrangeiro este valor seja nulo.

O valor da casa do Dr. Adriano Duarte Silva está intimamente associado a uma carga histórica, pelo papel desempenhado por este cidadão (embora muito vilipendiado por questões de natureza ideológica) na história recente de Cabo Verde. A questão do seu valor patrimonial e arquitectónico não pode ser decidida por leigos na matéria ou desinformados, mas sim por peritos experientes, que partindo de conjunto de parâmetros objectivos, que envolvem considerações históricas, arquitectónicas etc, definem uma classificação. Neste aspecto, a existência de pontos de vista antagónicos pode ser resolvida com o recurso a uma peritagem internacional independente.

O que os promotores da petição em favor da conservação alegam é que o processo foi conduzido na ausência total de transparência, não se ouviram nem se consultaram pessoas idóneas ou abalizadas, o que redundou no final num extremar de posições antagónicas e irreconciliáveis. No meu comentário ao artigo da autoria do arquitecto Nuno Ferro (Liberal Online, 03/03/2009) defendi que a alegação, não provada, da existência de 3 mil assinaturas para a demolição do prédio não pode ser determinante, por si só, para uma decisão por quem detém o poder, pois o que está em causa é matéria muito sensível. Raciocinando pelo absurdo, um abaixo-assinado de 50 mil pessoas para demolir o Palácio do Governo também poderia passar a decisão inquestionável.

É arrepiante os gritos que se ouvem pressionando para uma demolição imediata, melhor urgente e incondicional do edifício, sem se estudar alternativas, o que encaminha as coisas para a solução mais fácil, no meu entender. Num mundo onde se ouvem palavras como Reciclagem, Requalificação, Reutilização, Reabilitação e Sustentabilidade, é paradoxal que em C. Verde, país que nasceu da reciclagem das ajudas, da reutilização e da re-injecção dos fundos assim gerados na débil economia dos primeiros anos da independência, se fale em demolição com tanta facilidade e se rejeite de repente, como se de uma obsessão se tratasse, valores patrimoniais considerados agora antigos, ultrapassados ou ‘fora de moda’.

Para os muitos mindelenses que insistem que a casa do Dr. Adriano Duarte Silva tem um valor patrimonial e histórico olham para o conjunto constituído pelos 3 edifícios, Palácio, Liceu Velho e casa do Dr. Adriano Duarte Silva, incluía ainda a casa da família Pedro e Etelvina Neves, (ao conjunto que chamaria de quatro nós) como fazendo parte de uma unidade no espaço, mas sobretudo no tempo, que é o que o mindelense chama ‘temp de caniquinha qonde góte de Mané Jom tá ingordá na gemada’ e esse tempo é representado por esta figura. O desaparecimento deste edifício será o fim da harmonia deste conjunto arquitectónico e é uma ruptura com o passado histórico do Mindelo. É isso, e simplesmente isso.

O espaço em questão precisa de ser requalificado e dignificado, e nesta perspectiva uma solução inteligente aponta para a reabilitação do edifício em questão. De um pardieiro, como foi chamado, ou ponto de refúgio de concidadãos, que infelizmente caíram nas teias da droga, poderá nascer um novo conceito para esta nossa ‘baixa’, desculpem-me ‘alta’ da cidade, o renascer de um novo Mindelo e quem sabe um renascimento urbanístico para as cidades de Cabo Verde. É precisamente da proliferação de mamarrachos e de prédios descomunais, de que Mindelo tornou-se campeão, que não se enquadram no panorama da cidade e que contribuem para o desaparecimento dos seus marcos históricos, assim como para o apagamento da sua estrutura arquitectónica, que poderão surgir os problemas sociais, à semelhança do que aconteceu a partir dos anos 80 nas grandes cidades do Mundo.

Considero que os quatro nós, que acima identifiquei, deverão ser enquadrados em futuros planos culturais e turísticos de dignificação da cidade, pelo que não faz muito sentido transformar um espaço exíguo numa zona de grande circulação e de grande pressão devido à localização de uma Delegacia de Saúde, para o grande público, ou seja toda a população do Mindelo. Como o arquitecto Nuno Ferro frisou (Liberal Online, 08.03.10), as características da área onde se quer implantar este centro, podem não ser as mais adequadas para colocar um edifício de grande porte, se calhar mais outro mamaracho, com todo o seu espaço vital (acessos, etc.). Um serviço de saúde moderno e voltado para o futuro exige, condições de acessos, espaço para expansão futura e possibilidade de anexar outros serviços afins. Mindelo ainda não tem um repositório para a sua história. Um Museu que dignifique a cidade e havendo aposta num turismo de qualidade, no desenvolvimento de um complexo universitário na cidade é preciso ter ofertas culturais. De novo surgem estes quatro nós. Dadas as características e localização do prédio uma utilização mais sensata poderia ser, na minha opinião, um Museu da Cidade ou um outro projecto cultural que projecte esta cidade para o futuro.

O que está acontecer com esta casa e o cine Eden Park leva a interrogar se já não é tempo de se criar uma associação em defesa do Mindelo, para inventariar todo o património material e imaterial da cidade, classificar e encontrar recursos à sua preservação e requalificação. É preciso criar mecanismos que defendam esta cidade de investidas de diferentes interesses. A nossa cidade hoje está-se consumindo a lume brando e na indiferença geral. Concordo com o sociólogo Luíz Silva quando diz que o Palácio em São Vicente está destinado aos ratos e às moscas e que este merecia um destino bem digno. É precisamente devido ao estado da bandalheira e ao uso aos pontapés do património que se chega a situações de degradação extrema e propostas de demolição imediata. Amanhã no mundo liberal em que biliões circulam à velocidade da luz, as investidas de interesses imobiliários e fundiários serão tal que se não houver legislação nem políticas adequadas em relação ao património das cidades, irão os dedos e os anéis ao mesmo tempo.

A todos os subscritores da petição e ao núcleo inicial lanço o seguinte repto:
-Sendo por um lado o Dr. Jacques Nicolau de Sallis e Celerina francês ou de origem francesa, e tendo em conta que Roberto Duarte Silva, parente de Adriano Duarte Silva, foi um grande cientista caboverdeano em França no Século XIX que recebeu a mais alta distinção honorífica deste país (Saial, 2007), não poder-se-ia explorar a hipótese de um envolvimento da França, da cooperação francesa na Praia, ou mesmo de uma organização não governamental francesa, para dar um apoio técnico e financeiro, para conjuntamente com técnicos locais e nacionais interessados, avaliar o património, com o objectivo da sua preservação, conservação e transformação, num museu do Mindelo ou numa instituição de interesse público.

- Urge organizar iniciativas envolvendo um conjunto de técnicos, peritos e pessoas da cultura, nacionais e internacionais a fim de estudar as hipóteses de Mindelo, em coordenação com as autoridades municipais e centrais, candidatar-se aos grandes programas europeus ou internacionais de requalificação urbanística e de património cultural. Pois há dinheiros disponíveis. Todas as cidades portuguesas vem beneficiando desde os finais dos anos 90, através do Programa Polis co-financiado pela UE, de projectos de requalificação que permitiram preservar e restaurar o património que como em Cabo Verde estava a cair de podre (museus, edifícios públicos, centros das cidades etc). Mindelo precisa de ser mais acarinhada.

É preciso uma nova ideia/conceito para a cidade do Mindelo. Precisamos não somente de internacionalizar o nosso Carnaval e o festival de Baía das Gatas, mas também fazer com que Mindelo se abra ao mundo e ao Sec. XXI, como é sua vocação, para que num futuro esta cidade volte a ser o grande centro cultural de Cabo Verde. Podemos sonhar com a nossa cidade palco de grandes eventos internacionais, de cariz cultural (teatros, concertos, festivais de música do mundo, do jazz, música contemporânea, música clássica, etc), artístico e científico. Que especialistas de todo o Mundo possam um dia visitar a nossa ilha, proferir palestras e seminários em todas as áreas do saber, que se realizem workshops, seminários e congressos internacionais, que se instalem empresas de ponta e centros de pesquisa em áreas de interesse para a humanidade e o planeta Terra. Enfim, que possamos ter um grande campus universitário internacional de excelência aberto ao Mundo onde os nossos jovens e investigadores possam contactar com os melhores e com o melhor que se faz no Mundo.

- Urge dinamizar o grupo de defesa do património do Mindelo para criar uma autêntica força de pressão e para a defesa dos interesses da cidade.

Quero aqui expressar a todos os moradores do bairro onde se situa a ‘casa das contendas’ a minha compreensão e solidariedade à revolta publicamente exprimida, que não é mais do que um manifesto contra o estado de abandono e desleixo a que as autoridades votaram o imóvel. Não se pode exigir, para o bem da saúde pública, nada menos do que medidas imediatas tendendo ao saneamento urgente do local e à protecção e segurança do espaço em torno.

Que esta luta travada no Mindelo sirva de exemplo para as restantes cidades de C. Verde, de S. Antão a Brava, que de certeza não estão imunes aos ventos dos novos tempos, para que labutem para a preservação do seu património histórico e cultural, seja em que condição estiver.
Viva a cidade do Mindelo, Viva Cabo Verde
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Referências:
Joaquim Saial, A coluna de Joaquim Saial CABVERD DI MEU, 11.01. 07.
Nuno Ferro Marques, Antipetição e Destruição do Mindelo, Cabo Verde, Liberal Online, 03.03.07.
Nuno Ferro Marques, Delegacia de Saúde e Património Urbano, Liberal Online, 08.03.07.

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