A cultura de um povo é toda a sua memória.


terça-feira, 25 de maio de 2010

«Guardiões da cidade do Mindelo» - Nuno Ferro Marques

«Até à segunda metade do século vinte o carácter da cidade do Mindelo era facilmente definido. Era uma cidade com porto de mar, essencialmente comercial. No entanto teve lugar um desenvolvimento no domínio do ensino que contribuiu para dar outra dinâmica à cidade. Mindelo tornou-se o centro do ensino do arquipélago, também com importância para a vizinha colónia portuguesa, a Guiné, através da criação dum liceu nacional com sede em S. Vicente. A instalação do Liceu no Mindelo resultou no ponto de vista geral da substituição em 1910 da Monarquia Portuguesa pelo poder republicano e liberal, que teve a ambição de democratizar e modernizar a vida política, económica e social de Portugal. (…) A criação dum liceu em Cabo Verde foi (…) fruto da insistência essencialmente de uma personalidade, o Senador Vera Cruz, que em 1917 conseguiu no Parlamento da República a aprovação da lei n.º 701, de 13 de Junho (…), que criou o Liceu Nacional com sede em S. Vicente.» (Brita Papini, 1984:81). *
Liberal, 15 Mar. 2010«Guardiões da cidade do Mindelo»

«Por onde andavam esses defensores do património?» **, perguntam, insistentemente, e um pouco por todo o país, titulares de cargos públicos e políticos.

Mas a resposta é deveras simples.

Os cidadãos andavam a estudar e a trabalhar, justamente, a ganhar conhecimento e experiência, para exercerem mais e melhor cidadania (incluindo, a oposição política e até partidária, porque não?!), sempre que, sem prejuízo das demais virtudes, a situação, seja ela qual for, azedar, como parece ser o caso. Mais, por vezes, os cidadãos andavam, algures, a defender causas. Mas mesmo que assim não fosse, nada impediria aos cidadãos que o fizessem pela primeira vez. Assim como nada o obriga a fazê-lo sempre. Tanto mais quando é consabido que, por ora, a liberdade de expressão em Cabo Verde deixa sequelas, sobretudo, a quem não espera benesses sob a forma cargos públicos e políticos. Mais desleal não pode ser cada tentativa de tais titulares, eleitos e nomeados, não só dirigirem tal pergunta aos cidadãos, como trespassarem-lhes o ónus da «defesa do património do Estado e de demais entidades públicas».

De resto, não é da conta de tais titulares por onde andaram ou deixaram de andar os cidadãos.

A imprensa, citando um autor de um projecto em Cabo Verde:

«A primeira proposta do Ministério das Infra-estruturas para a nova Delegacia de Saúde de São Vicente era de facto uma construção de raiz, com a demolição do edifício existente mas a intervenção do Ministério da Cultura levou a uma mudança de planos. Actualmente, há vontade política de preservar o edifício. Aliás, está marcada para hoje, 18 de Novembro, uma reunião entre técnicos dos ministérios das Infra-estruturas, Saúde e Cultura. A única proposta em cima da mesa é a reabilitação da antiga casa de Adriano Duarte Silva, sem comprometer a funcionalidade da delegacia» (Expresso das Ilhas, 17. Nov. 2009).

De notar que um autor de um projecto, em exercício da actividade liberal, não representa nem o Governo nem o Município. Não foi, portanto, o Ministério de Estado e das Infra-estruturas, Transportes e Telecomunicações (MEITT) que reconheceu o erro da «construção de raiz, com a demolição do edifício existente», tampouco foi este ministério que prometeu corrigir o erro. Idem, para a Câmara Municipal de São Vicente (CMSV) que, por via de uma planta de localização que facultava a demolição do edifício, emitira sentença de morte contra este exemplar único de património cultural.

Questiona-se, pois, a viabilidade do programa que o regime propõe, resumidamente, «a reabilitação da antiga casa de Adriano Duarte Silva, sem comprometer a funcionalidade da delegacia», conhecidos que são os antecedentes, ou seja, «a primeira proposta do Ministério das Infra-estruturas para a nova Delegacia de Saúde de São Vicente era de facto uma construção de raiz».

Em matéria de funcionalidade e reabilitação não se pode ter tudo e, por algum motivo, mais recentemente, os peticionários acabaram por concluir que o sistema laborava em mais um embuste, daí terem resolvido relançar as petições em versão papel e on-line.

«O promotor desta petição é Maurino Delgado, que não tem poupado esforços para promover esta causa, andado incansavelmente em Mindelo para consciencializar as pessoas. Ontem esteve em frente a Universidades para distribuir panfletos onde se podia ler que “afinal, o Governo decidiu demolir a casa do Dr. Adriano Duarte Silva, património histórico (…)”, como introdução para a exposição que faz». (Liberal, 26. Jan. 2010).

Pois, se não se puder «salvaguardar» «a funcionalidade da delegacia», a mesma que, comprovadamente, já esteve tão perto de arrasar património cultural, o que não irá ficar comprometido pela «reabilitação» apalavrada, publicamente, não pelos titulares, mas, pelo autor do projecto que, efectivamente, não representa nem o Governo nem o Município?

Daí que a imprensa cabo-verdiana tenha procurado reflectir as profundas contradições do Estado:

«As obras para a construção da Delegacia de Saúde de São Vicente, que vai ficar no local onde está a casa do Doutor Adriano Silva, vão arrancar até ao fim deste mês. O anúncio foi feito pelo Director Geral das Infra-estruturas: “nesta semana vamos abrir as propostas que se submeteram ao concurso para a construção do edifício da Delegacia de Saúde”, disse. Deste modo, tudo indica que chegou ao fim a polémica entre um grupo de mindelenses que pretendiam que o edifício não fosse demolido alegando que se trata de um património e a CMSV, proprietária do imóvel, e Governo que defendiam a construção da Delegacia nesse local» (Liberal, 2. Mar. 2010).

Mais encantador do que dois Ministros de Estado (Infra-estruturas e Saúde) omissos (2001 - 2010), em matérias fundamentais para os cidadãos, somente o encanto de uma Edilidade em epístola aos seus «Falsos Guardiões da Cidade do Mindelo» **:

A CMSV não aceita a continuação de «uma estéril e inútil polémica sobre o destino a ser dado à casa promovida por um punhado de pessoas armadas em defensores do património mindelense apenas quando lhe interessa»; essas pessoas são movidas por «interesses partidários e obscuros e que têm tentado travar tudo o que de moderno se pretende para São Vicente»; esse grupo de pessoas defensor de «uma fantasiosa defesa do património nunca apresentou soluções para os falsos problemas que levanta, não tinha solução para o Fortim d'el Rei e nem para a casa do Dr. Adriano Duarte Silva, ficou em silêncio enquanto Câmara procurava soluções para pôr fim à degradação e ao perigo que representam para a saúde pública»; «por andavam esses defensores do património quando se levantou a defesa do antigo ex-pontão do cais da Alfandega hoje transformado numa dita marina em que todos os traços da riqueza patrimonial e histórica foram destruídos e por onde andam perante a degradação do Palácio do Povo e do Cinema Éden–Park»; «fizeram um abaixo-assinado que teve apenas duzentas assinaturas. Queriam fazer pensar que o povo estava do seu lado. Mas quando foram confrontados com três mil assinaturas a favor e com o apoio da população não aceitaram»; A CMSV reitera, por outro lado, a sua concordância com o Governo e com o Ministro da saúde e considera que o destino que se pretende dar ao espaço «é de toda a dignidade e nobreza não só porque nele vai nascer uma obra de arquitectura moderna e bonita, também, património do Estado como também pelos serviços que, na Delegacia de Saúde, irão decorrer, imortalizando os homens da Ciência como o Dr. Jacques de Sallis, médico, físico e Delegado de Saúde, a quem é atribuída a construção do prédio, Dr. Roberto Duarte Silva, jurista, advogado, juiz e professor, Dr. Adriano Duarte Silva, juiz, professor, cônsul, deputado, Dr., Sarmento Silva, médico, Dr. Alexandre Silva, médico e Dr. José Duarte Fonseca, médico/ cirurgião»; «a Câmara Municipal não dispõe de nenhum outro espaço digno para a construção da Delegacia de Saúde e que não se responsabiliza pela eventual inviabilidade do projecto». **

A verdade é que em nenhum momento a nota da CMSV refere a intenção de reabilitar a casa e, muito menos, sem comprometer o património cultural, sem esquecer que a Planta de Localização da CMSV assumia a demolição da casa de Adriano Duarte Silva.

Idem, para o Ministério de Estado e da Saúde e para o Ministério de Estado e das Infra-estruturas, Transportes e Telecomunicações, de que não se conhece qualquer intenção de reabilitar a casa e, muito menos, sem comprometer o património cultural, pelo contrário, sabe-se que «o» funcionário do regime desconhece todo o património cultural que não esteja referenciado em «BO» (Boletim Oficial).

Quem acompanhou, por exemplo, o processo do Palácio de Justiça de São Vicente, eis um exemplo simbólico, e a mesma aversão ao património cultural, sabe que o modus operandi daquele ministério não é de hoje. De resto, são consabidos os inúmeros processos judiciais contra o mesmo Ministério que em nada abonam a sua credibilidade. Temos, pois, razões de sobra para não acreditar no regime, mormente, em Ministros de Estado e demais funcionários empreiteiros.

Não obstante a boa-fé da declaração do autor do projecto, em regime de actividade liberal, tudo indica que ambos os Ministros de Estado estiveram mais interessados em submeter o património cultural à «funcionalidade» de uma delegacia que jamais justificará, por si só, a escolha da casa do Dr. Adriano Duarte Silva, inviabilizando este local para usos mais adequados.

Quanto a alternativas, não somos obrigados a dá-las, mormente, sem os recursos do Estado e/ou do Município, mas, assim mesmo temo-las dado. Concebemos para o conjunto Palácio, Liceu, Casa Adriano Duarte Silva, e demais edifícios dos mesmos quarteirões, um Campus Universitário que integre um Museu, um Centro de Artes e/ou um Palácio de Cultura, em parcerias público-privadas, sem esquecer Residências Universitárias para docentes e discentes e incentivos aos moradores da zona que queiram reabilitar os seus edifícios e acolher estudantes nacionais e estrangeiros, sem prejuízo da futura autonomia dos vários equipamentos, entre eles, o Museu, e sem prejuízo da articulação deste Campus Universitário com outros equipamentos na ilha, no arquipélago e no mundo, naturalmente. É fundamental que este conjunto Palácio, Liceu, Casa Adriano Duarte Silva, e demais edifícios dos mesmos quarteirões se mantenha coeso.

Concluiremos, tal como iniciámos, com Brita Papini, e mais esta nota a propósito de Mindelo:

«Em 1924 teve lugar uma greve dos trabalhadores de carvão de tal importância que foi referenciada (como o único exemplo) no Boletim Oficial. (…) No ano seguinte «factos anormais» ocorreram no Liceu de S. Vicente, o que induziu o Governo a ordenar um inquérito oficial dos acontecimentos. (…) Nos dias 24 e 25 de Janeiro de 1929, no período em que reinava uma das crises agudas de trabalho em São Vicente, eclodiu uma desordem no Mindelo. (…) A 24 de Janeiro houve uma manifestação pública em frente da residência do Juiz de direito seguida de uma outra no dia 25. A Polícia interveio. Houve tumultos em que foram feridos o Comandante Interino do Corpo da Polícia e outros. O Governo decidiu imediatamente que o Comandante Militar de S. Vicente assumisse o governo militar e exercesse todas as atribuições policiais da cidade. (…) A situação para a grande maioria da população de S. Vicente não melhorou na década de trinta. Ao contrário! A crise mundial ocasionou problemas económicos especialmente em S. Vicente como ilha dependente do movimento marítimo internacional. (…) Durante este período difícil para as massas populares em todo o mundo ocidental e países dependentes, o regime de Salazar em Portugal alinhou-se politicamente com a ideologia fascista e introduziu o corporativismo. Paralelamente desenvolveu-se uma repressão cada vez mais aberta e dura contra qualquer forma de oposição. (…) É visto nesta perspectiva que a «revolução de Nhô Ambrose» em S. Vicente no ano de 1934 foi uma prova bem evidente não só das dificuldades do povo como da grande coragem dos manifestantes. (…) Depois veio a repressão. Nhô Ambrose, pelo povo chamado Capitão Ambrose, foi preso e deportado para Angola. (…) A efectividade da Polícia durante os acontecimentos foi posta em dúvida. Todos os cabos e guardas, que constituíam na altura o Corpo da Polícia Civil de Mindelo, foram exonerados e ordenou-se a reorganização do serviço. (…) Um outro exemplo do clima político, que se vivia então, foi a extinção em 1937 (…) do Liceu de São Vicente, decisão que no entanto ocasionou tantos protestos a todos os níveis e também a nível internacional, que o Governo de Salazar teve de revogar um mês depois (…). A extinção em 1939 da organização juvenil desportiva Sokols de Cabo Verde no entanto nunca foi revogada (…). Neste mesmo ano de 1939 a Segunda Grande Guerra rebentou. A cidade do Mindelo viria a emergir desta guerra em certos aspectos como uma cidade moderna mas com mais problemas do que nunca a nível populacional, habitacional, urbanístico, sanitário, económico e político.» (Brita Papini, 1984:86-7). *

Notas:
(*) Brita Papini, «Linhas Gerais da História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo», Fundo de Desenvolvimento Nacional do Ministério da Economia e Finanças, Praia, 1984
(**) «Polémica futura Delegacia de Saúde: Câmara emite comunicado», Sítio Web da CMSV, 16. Dez. 209
( http://www.cmsv.cv/index.php?option=com_content&task=view&id=575&Itemid=2 )

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