A cultura de um povo é toda a sua memória.


sexta-feira, 21 de maio de 2010

S. VICENTE, QUEL PAÍS

Um hino ao ser mindelense, lembro-me bem, foi o que me ocorreu quando um colega, definitivamente, cúmplice deste furto de património cultural, me enviou a obra. Mas eu fui mais longe, consegui subtrair o original directamente ao autor, para vós. E aqui vai, sem problemas, podem ler, terão 100 anos de perdão. E, para todos os efeitos, eu só li a versão que o José me habilitou. Nuno Marques

Viriato de Barros

S. VICENTE, QUEL PAÍS


Quem chega a São Vicente, vindo de uma outra ilha como a Brava, por exemplo, de rochas húmidas e terras verdejantes, muros forrados de musgo, estradas ladeadas de cardeais ou de cercos de cafezeiros, ou Santo Antão, com os seus vales férteis, exuberantes por onde correm ribeiras de água cristalina, tem, de entrada, a sensação de um banho de aridez e secura que o envolve para onde que se vire.

As espinheiras cobertas de poeira vergam sob a pressão do vento agreste que fustiga a ilha sem cessar. A poeira deposita a sua marca em tudo por onde passa e passa por tudo. Tudo seco. Tudo árido. Mas quando ergue os olhos e alcança a vista que se descortina mais à distância, vê areais dourados em estonteante contraste com o azul do mar e descobre, aí, uma outra beleza feita de tons do mar, do céu e dos matizes de crepúsculos e auroras sem igual.

É uma outra ilha, outra gente. É uma ilha-cidade. Não há campo, nem camponeses. Há rochas, pedras e terra, areia e ribeiras secas que não nos deixam esquecer que, por serem ribeiras, um dia por elas passou água e por ela esperam o ano inteiro, todos os anos. Em S. Vicente também chove, pelo menos uma vez por ano. E às vezes chove tanto que algumas ribeiras conhecem dias de verdura, ainda que por tempo escasso.

É por isso que se diz que S. Vicente não tem interior, como tem, por exemplo, a ilha de S. Tiago. Claro que, rigorosamente, talvez a Ribeira Julião, o Lameirão, o Pé de Verde e o Monte Verde pudessem ser considerados "interior", mas a verdade é que ninguém pensa nesses lugares como tal. Nas disputas entre mindelenses e santiaguenses, numa rivalidade possivelmente tão antiga como o povoamento das respectivas ilhas, um dos argumentos que se tem ouvido santiaguenses utilizar contra os mindelenses para demonstrar que a sua ilha é melhor, é o de que S. Vicente não tem interior. Na versão que conheço da história, esse argumento foi rebatido sem qualquer hesitação ou dúvida por um mindelense de gema com a afirmação de que S. Vicente tinha interior, sim senhor, e que o interior de S. Vicente era naturalmente toda a ilha de Santo Antão. Dali vinham as verduras, e outros produtos que enchiam o mercado municipal de S. Vicente. Perante tão segura convicção, quem ousará duvidar? Com efeito houve tempos em que a própria água de beber ia de Santo Antão, transportada em barcos-depósitos. Mais propriamente num barco depósito conhecido popularmente por "vaporim d'água", ou seja, vaporzinho de água, em português corrente.

O certo é que o mindelense - todo o natural de S. Vicente é mindelense, já que nunca se ouviu ninguém dizer que é são-vicentino - desenvolveu ao longo da sua história um sentimento muito próprio de orgulho e independência a respeito da sua ilha, sentimento que lhe adveio de certas vantagens e circunstancias. Os mindelenses tinham um liceu e centros de formação profissional como a Escola Técnica e a oficina da Pontinha, tinham as companhias inglesas que davam uma nota britânica aos costumes locais, como o hábito de jogar o "cricket", o golfo e o ténis, aprendido com os ingleses, havia expressões que faziam parte do vocabulário comum como "crizmis" ( de Christmas), nhocasse (de New Castle) para designar o carvão eventualmente proveniente daquela cidade britânica, as pessoas andavam de calções e usavam sapatos de ténis, bebiam o chá das cinco e tomavam "gin tonic". Havia mesmo quem falasse português (ou creoulo) com sotaque inglês adquirido por contiguidade nas companhias inglesas. Coisas, evidentemente do passado. Havia mesmo um certo estilo de andar, ligeiramente inclinado à direita, com um bengalim debaixo do braço esquerdo que, segundo parece, tinha proveniência britânica. Mesmo sem o bengalim, ficava-lhe o jeito. A postura imprimia um estilo.

Havia outra circunstância que contribuía para esse modo mindelense de estar na vida. O fato de o Porto Grande de S. Vicente ser um importante porto internacional, visitado por navios de todas as nacionalidades e provenientes dos mais longínquos e variados lugares, permitia aos mindelenses um contato constante com diferentes culturas, com diferentes hábitos e costumes.

Para além daquelas influências, houve um outro fator, muitas vezes ignorado ou minimizado por sociólogos: a influência do cinema. O Eden Park e posteriormente o também o cinema Parque Miramar, popularmente conhecido como "Cinema do Tuta" foram duas importantes instituições de educação informal e de aquisição de conhecimentos e de estilos. Quem quiser pesquisar a origem de um certo estilo mindelense, de uma determinada época, terá que rever os westerns, os filmes de aventura e mesmo os musicais da época e observar os seus protagonistas para compreender esse estilo. Irá encontrar as réplicas mais acabadas dos estilos John Wayne, Errol Flynn, Fred Astaire ou César Romero, não esquecendo as Betty Grables, as Alice Fayes, das épocas mais antigas e os Clint Eastwoods e seus parceiros dos tempos mais recentes. Nas outras ilhas ou não havia cinema ou a sua influência era não era tão dominante nos costumes locais, como no caso da ilha de Santiago onde, quando muito, os seus efeitos sentir-se-iam na Praia, deixando o interior de fora.

Para além dessas influências, os mindelenses criaram o seu próprio modo e filosofia de vida de que é parte integrante um sentido de humor muito seu, que o leva a rir-se das suas próprias carências e dificuldades. Esta postura obedece a uma estratégia de defesa e sobrevivência num determinado meio, cujos padrões de avaliação foram gerados dentro dos parâmetros estabelecidos pela realidade local e pela sua capacidade criadora e imaginativa. Registo aqui um simples incidente a que pude assistir no período de transição para a independência de Cabo verde em que a rotura de stocks provocou situações de carência de alguns géneros básicos e com as consequentes filas de espera à frente de estabelecimentos comerciais. Tinha-se formado uma "bicha" à frente de uma conhecida padaria à esquina da Rua da Luz, mesmo junto à igreja, o tempo ia passando e o pão não aparecia. A medida que o tempo ia passando, aumentava o silêncio e mais pesada se tornava a atmosfera ambiente. E a dúvida sobre se haveria pão ou não aumentava. Subitamente uma moça descalça que se encontrava na bicha juntamente com uma companheira da mesma idade olhou para a amiga e começou a entoar uma coladeira muito em voga na altura. E as duas começaram a cantar elevando a voz aos poucos e a dançar. Daqui a pouco dançavam e cantavam alegremente como se estivessem numa festa popular. E toda a gente se riu, esquecendo as preocupações que naquele momento a todos inquietavam. O pão, felizmente, acabou por aparecer.

Se relativizarmos o conceito de nação não é difícil concluir que os mindelenses constituem uma nação dentro do conjunto das ilhas, conclusão, aliás, aplicável a cada uma das ilhas de Cabo Verde. Somos nove (Santa Luzia não conta, por enquanto) pequenas nações insulares, sempre dentro dessa relatividade. Conquanto os mindelenses o façam a brincar ao se referirem muitas vezes à sua ilha como "aquele país", quando residem noutra ilha, a brincadeira não deixa de ter um fundo de convicção e de que alguma coisa foi criando, ao longo dos anos, de seu, de próprio, que faz da sua ilha aquilo que o leva irresistivelmente a chamar-lhe "aquele país", quando de longe a ele se refere. Sem dúvida o distanciamento do centro do poder e alguma autonomia conquistada graças ao Porto Grande, desde os tempos coloniais e mesmo depois da independência, apesar da progressiva diminuição sua importância como porto, tem muito a ver com isso. Há qualquer coisa a que podemos chamar o espírito de uma cidade. É o que sentimos em relação a Rio de Janeiro, Paris, Lisboa, Londres, Nova Iorque, Dakar, Buenos Aires, sei lá... Nem todas as cidades têm isso. Mas ninguém tem dúvida, estou certo, que Mindelo tem esse carisma. Um não sei quê indefinível que todo o mindelense sabe bem o que é.

4 comentários:

  1. A visão da minha ilha/cidade vista pelo Embaixador Viriato de Barros, meu ex-condiscipulo no liceu Gil Eanes, não podia ser mais interessante. Nem todos os outros ilhéus dizem a mesma coisa e, por isso, vai um muito obrigado ao bravense e ilustre compatriota. - Valdemar Pereira

    ResponderEliminar
  2. O amigo Dr.Arsénio de Pina já mo tinha enviado mas de qualquer maneira nunca se cansa de ler o que é bom e está bem aí no ADEMOS. Bem hajas amigo Viriato Barros! E obrigado pela parte que nos toca a todos verdianos de bom senso.Forte e fraterno abraço do Zizim Figuera

    ResponderEliminar
  3. Apesar de já o ter lido, recebido do Arsénio de Pina, vltei a deliciar-me com este belo pedaço de prosa, que fala da nossa cidade com muita autenticidade.

    Um abraço

    Adriano

    ResponderEliminar
  4. Gostei imenso do texto do Dr. Viriato de Barros. Retrata com perfeição a forma de ser e de estar do mindelense, fruto do seu contacto com outras culturas, ao mesmo tempo que nos transporta no tempo para as vivências e peripécias na cidade do Mindelo.

    Cordiais saudações
    Fátima

    ResponderEliminar