A cultura de um povo é toda a sua memória.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Ditadura(s) da(s) maioria(s) em Cabo Verde - Nuno Ferro Marques

«Todo o processo (…) que leva à (…) eliminação do reclamante enquanto tal, à anulação da sua presença no diálogo, à sua redução ao silêncio, deve ser considerado acto de violência». (Edgar Faure, citado por Arsénio de Pina). *

«...nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos, e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente; e, segundo, que existem fronteiras, não artificialmente traçadas, dentro das quais os homens devem ser invioláveis» (Isaiah Berlin, a propósito de Constant, Mill e Tocqueville). **
Liberal, 29. Mar. 2010
Ditadura(s) da(s) maioria(s) em Cabo Verde
http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=50&id=27972&idSeccao=533&Action=noticia

Após dezasseis anos sem qualquer notícia de petições, após a abertura política em Cabo Verde em 1990, pelo menos, petições relacionadas com a «defesa do património do Estado e de demais entidades públicas» ou com a «defesa do cumprimento do estatuto dos titulares de cargos públicos» (previstas pelo Artigo 58.º da Constituição), por algum motivo, em 2006, a cidadania cabo-verdiana retomou as petições e inaugurou as acções populares (igualmente, previstas pelo mesmo Artigo 58.º).

A 14. Mar. 2010, cumpriu-se o vigésimo aniversário sobre a primeira «Declaração Política do MpD», assinada por 580 cidadãos, tida como «um marco do fim do regime de partido único em Cabo Verde».***

Desgraçadamente, o regime continua a garantir a impunidade face aos actos e omissões de titulares de cargos e políticos (abreviadamente, «titulares»), actos e omissões que lesam os cidadãos, o seu património e o património do Estado e o património de demais entidades públicas, actos e omissões que, entre outras consequências, alimentam um ciclo crescente de injustiça, intolerância e violência.

Entretanto, a denegação de justiça já vai sendo reconhecida mas ainda é chamada de «morosidade» por gregos e troianos. E assim progride, inexorável, a criminalidade violenta. E é neste contexto que nos damos conta da alegria com que os «titulares», gregos e troianos, se fazem valer de certa contrapetição, ou antipetição, cujo promotor, nem por isso tem sido publicitado.

Para os nossos cientistas políticos, o mérito de uma petição constitucionalmente consagrada, volvidas duas décadas após aquele marco histórico do fim do regime de partido único em Cabo Verde, fica-se, pois, pelo número de assinaturas de um «abaixo-assinado».

Futuramente, os «titulares», sempre que contrariados nas suas decisões por petição da cidadania, recorrerão às antipetições. Encomendá-las-ão, usando, aliás, os recursos do Estado e/ou dos Municípios contra os cidadãos que protestam. Por outras palavras, uma vez eleitos ou nomeados, os «titulares» passam a deter o poder de fazer o que bem lhes aprouver, sem qualquer crivo especializado e jurídico.

Até aqui, tudo muito certo na perspectiva dos nossos democratas vintage.

Quando em 2006 surgiu o movimento cívico em defesa do ilhéu de Santa Maria (contra os negócios da China de governantes e autarcas da capital, hoje, ex-governantes e ex-autarcas demitidos e/ou derrotados), movimento que prometeu (e cumpriu) apresentar 300 assinaturas (aliás, apresentou 364), em reacção, ilustres cidadãos e líderes associativos, ou candidatos a isso, até juristas, e esclarecidos governantes e autarcas, reiterada e expressamente alertados para o Decreto-Lei n.º 3/ 2003, de 24 de Fevereiro **** (do mandato 2001 - 2006), assim mesmo, tardaram em perceber os termos do Artigo 10.º deste Decreto-Lei que obriga o Estado a agir em presença de 300 assinaturas.

Muitos acharam que 300 assinaturas em Cabo Verde era coisa pouca e prometiam (se bem que se ficaram pela promessa) apresentar, não 300, nem 3.000, mas, 30.000 assinaturas (a favor dos tais negócios da China). A Assembleia Nacional (AN) não respondeu à petição, nem a Procuradoria-geral da República (PGR) respondeu à reclamação, ambas entregues contra-recibo (ver imagens das respectivas primeiras páginas), de tal sorte que fossem dado por «nulo e de nenhum efeito» o tal negócio. O certo é que os negócios não se fizerem. Sem esquecer que os protagonistas hoje são ex-governantes e ex-autarcas demitidos e/ou derrotados a braços, com múltiplos processos nas instituições da república pelos motivos menos nobres.

Na Europa, continente de origem de muitos dos nossos parceiros, em alguns países também ainda é assim, as instituições, agindo ou não agindo, não respondem, o poder faz letra-morta dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Mas há que compreender estas estranhas parcerias que apaparicam os nossos democratas, é que não há muitas décadas ainda sucumbiam regimes ditatoriais por alguns destes países. E se recuarmos um pouco mais, ainda eram os europeus bárbaros, já outros povos sabiam ler. Daí que não seja de estranhar que muitos dos nossos parceiros fechem os olhos a actos e omissões tão lesivas do poder, co-financiando projectos e obras contra os cidadãos, o seu património, ou o «património do Estado e de demais entidades públicas», mormente, quando consideram que «para africanos, os cabo-verdianos não vão tão mal assim» e trazendo a estes sobas o prazer de serem, entre tabankas, grandes chefes do abaixamento das expectativas.

Não obstante, é preciso trilhar este caminho das petições e das acções populares e, geralmente, ele é trilhado por quem acredita que o simples facto de o trilhar, independentemente, de erros e omissões do poder, já constitui uma vitória.

Em 2007, ainda antes de se empreender a «acção popular para defesa do cumprimento do estatuto dos titulares de cargos públicos, ao abrigo do Artigo 58.º 3 da Constituição, contra o Dr. José Maria Pereira Neves, Primeiro-Ministro», já gregos e troianos estranhavam e tentavam demover tal iniciativa. Hoje já todos sabem que nem um Primeiro-Ministro pode agir como agiu o arguido, o Primeiro-Ministro José Maria Neves e todos sabem que um só cidadão tem o poder e o dever de mover uma acção popular contra o titular que cometer os crimes que o arguido cometeu.

Curiosamente, até 2007, ilustres especialistas, quando questionados por leigos, depois de meditarem por uns segundos, assim como quem nunca havia pensado nisso, sorriam e reconheciam que, de facto, foram crimes. Em 2006 parecia normal que um Primeiro-Ministro cometesse crimes. Como quem diz, comete este e cometerá o próximo. A bem dizer, por serem cometidos por quem o foram, no imaginário dos nossos concidadãos, não seriam crimes.

Causou espanto a forma desta acção popular, via petição à AN, e não directamente em Tribunal, e só mais tarde alguns especialistas se lembraram do famigerado artigo 198.º da Constituição, (também ele, mais chapado não poderia estar no texto da petição). Mais uma vez ilustres cidadãos e líderes associativos, ou candidatos a isso, até juristas, e esclarecidos governantes e autarcas falhavam. Até aqueles cidadãos que manifestamente agiam de boa-fé (se bem que tentando, num primeiro momento, colocar em causa a boa-fé dos peticionários) estiveram mal. De uma forma ou outra, vieram a reconhecê-lo, e até tentaram reparar seu erro, por vezes, talvez sem se aperceberem, incorrendo em mais erros.

Seja como for, a AN esteve mal. Não respondeu, assim se ensina, em Cabo Verde o mais saudável para todos é baixar a cerviz. E quem mais baixa a cerviz, mas se candidata aos mais altos cargos da Nação.

Mas a AN também inclui a oposição. E se não se pode dizer que a oposição não tivesse agido, tanto mais que houve pelo menos um líder que se demarcou e que apelou aos esclarecimentos do Primeiro-Ministro José Maria Neves, a menos que este quisesse ser tomado de «leviano» (sic) e a oposição apresentou denúncia-crime à PGR. Sem esquecer que a pessoa do advogado a quem foi confiada a acção popular é a mesma pessoa que vem a ser hoje o líder do maior partido da oposição. Não se entende a generosidade da oposição para com a cidadania, pelo menos a que vinha de trás. É que a desculpa de «abrir espaço à cidadania», mais parece ser o contrário, e dispensa mais comentários.

Quanto à PGR que, no que se refere à acção popular, para agir precisava, de facto, de ser accionada pela AN, muito mais tarde, após a mudança de titular, fez uma curiosa manobra de diversão, alegou que absolutamente nada jamais poderia ter feito sem que a AN demandasse a PGR, como se a PGR só funcionasse a petições. Assim, enquanto disfarçava outras más prestações, suas e do seu antecessor, de que fora Adjunto, o Procurador-geral da República pretendeu, certamente, que os múltiplos crimes do Primeiro-Ministro ocorridos a 22. Jan. 2006, sem prejuízo dos demais, como que magia, ficam passados a pano.

Portanto, ficou a Nação e ficou o Mundo por entender o papel que o Dr. José Maria Pereira Neves dizia desempenhar no mundo do narcotráfico porque a AN e a PGR e os seus «titulares» que têm nome e ambições são ostensivamente cegos, surdos e paralíticos e, sem prejuízo das demais virtudes, ou são comensais e ficaram de mãos atadas à etiqueta «saca azul» que os promove ou deixaram claro que confundem as suas vocações com as suas ambições.

Tudo isto demonstra como o poder joga com a denegação de justiça apelidada de «morosidade» e também demonstra a sui generis independência dos poderes em Cabo Verde, incluindo truques e «manuais» do Supremo Tribunal de Justiça, e campanhas amarelas e outras fraudes do Presidente da República, sempre, sem o prejuízo das demais virtudes de cada um deles.

Mas a questão de quem, antes de mais, trilha novos caminhos, não está em saber se a maioria na AN iria votar no sentido da Assembleia requerer ao Procurador-geral da República o «exercício da acção penal contra o arguido Dr. José Maria Pereira Neves, Primeiro-Ministro, pelos crimes supra mencionados», mas está sim em saber com que desculpa o partido no poder se justifica perante a cidadania, para não ter agido em relação a tais crimes.

Dependendo dos pontos de vista, pois, para uns as petições e acções populares sempre foram vitoriosas, para outros nem vale a pena assinar uma petição ou acção popular que se destina a «apodrecer» na gaveta de Aristides Lima e outros «titulares» que tais mais interessados em baixar a cerviz e desonrar o seu compromisso com a Nação e candidatarem-se com apoio das suas Escolas aos mais altos cargos da Nação.

De resto, recursos constitucionais não faltarão para, tarde ou cedo, se revisitar as petições e acções populares “esquecidas” nas gavetas do PAN Aristides Lima, ora novel candidato à Presidência da República, com todas as consequências, incluindo aquelas que, eventualmente, haja oposição, irão surpreender alguns «titulares» ou ex-«titulares».

O certo é que, não obstante, nem situação nem oposição ajudarem muito a cidadania, para além dos convites para eventos, como se os partidos fossem a finalidade da democracia, a partir de 2006, gregos e troianos em Cabo Verde lançaram-se nestes recursos constitucionais, as petições e as acções populares. Associações públicas que pouco tempo atrás menosprezavam as petições, lançaram-se também elas e nesta forma de cidadania e também passaram a dar mais valor a umas centenas de assinaturas «mano-a-mano». Os cidadãos começaram a saber o que custa colhê-las, sempre que tantos esperam por tão poucos.

Assim mesmo, tudo isto, por si só, é uma vitória, mesmo que as instituições se façam de “morosas”, sendo certo, porém, que tarde ou cedo, tais «titulares» vão ser chamados à pedra. (Não nos referimos às urnas, naturalmente).

Chegaram as bancas das petições, na sede da Pró-Praia, contra os apagões da Electra, ou na Praça Pública, em solidariedade para com os primeiros grevistas de fome, Loureço de Pina e Carlos de Pina. Foi quando a então Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e Cidadania pronunciava a maior asneira de toda a sua existência e confundiu o direito à greve com o suicídio e o Estado com a Igreja. Depois chegou a geração das petições on-line, bem mais práticas, uma delas, em defesa do Cineteatro Eden Park ultrapassou as 1.000 assinaturas, porém, com menor ou nulo valor legal, sem prejuízo das demais virtudes, tanto assim o é que a felicitámos francamente, minorando aquele senão. Ouviu-se falar numa acção popular contra a Câmara Municipal de São Vicente. Outra contra a Câmara Municipal de Mosteiros. Desconhecemos se todas estas acções foram concluídas nem se foram respondidas. Mas sempre soubemos que se acumulam abaixo-assinados e petições na NA, por exemplo, e que o poder se habituou a desprezá-las. Por vezes, ouvem-se notícias surpreendentes, que petições fizeram desviar o cais acostável do ilhéu de Santa Maria e da Praia Negra e que foi dada razão aos peticionários, isto, deduzido pelos jornalistas. Mais nos pareceu que essa «razão» apenas ao de cimo porque se tratava de justificar atrasos e derrapagens financeiras de projectos e obras.

O certo é que, para o poder, o cidadão não tem que interferir com o poder, nunca merece resposta e, sobretudo, nunca tem razão. Pode entreter-se com a cidadania mas há-de compreender que terá de se conformar com as consequências do seu atrevimento, nomeadamente, os boicotes financeiros, as chantagens, a todos os títulos, criminosas, no local do emprego. Desgraçadamente, o eterno deputado, ora governante, ora membro do Conselho da Administração, há muito que perdeu a capacidade de sentir na pele do povo, se é que alguma vez o fez. Gere-se votos e imagem, e o povo que se dane.

Uma vez por outra, em questões tais como manter em funcionamento um café no palácio da Cultura, com as demais implicações, em prol da cultura, em vez de ceder o espaço a um posto de cobranças da Electra, o poder cede. Cede um cafezinho. De vez em quando, dá-se, portanto, uma imagem de tolerância, um aspecto de Estado de direito.

Até que se insinuou essa estranha fórmula - a antipetição do Estado e/ou dos Municípios de esplanada atirada contra a cidadania.

Até ao momento desconhecemos se esta invenção leva patente de algum funcionário do regime. Lá chegaremos. Custa-nos a acreditar que o povo do Porto Grande tenha enfiado semelhante barrete. O ardil é simples de se entender. Como o poder decide bem ou mal e a petição e/ou acção popular é uma arma constitucional para o povo se defender e defender o que é seu directamente, basta ao poder recolher 10 vezes mais assinaturas para cobrir a petição que, de qualquer modo, ficaria na gaveta. Lá está o tal aspecto de democracia. E nós que temos evitado a palavra ignorância para não ferir ainda mais a dignidade do regime.

Digamos que esta é, sem dúvida, a invenção democrática mais apaixonante destes vinte anos pós-abertura política contra o regime totalitário de partido único. Justamente, não houvesse sido inventada, também, em Cabo Verde, a etiqueta «saca azul» para bolsas de estudos, salários adiantados, mobília, lanches e até fatos, entre as demais vaidades, desafiaríamos o Ministério Público a investigar a integridade do engenhoso e arregimentado “abaixo-assinado”.

Naturalmente, não diremos que esta contrapetição, ou antipetição, não terá os seus méritos, mas diremos que, por algum motivo, eles não nos foram dados a conhecer, nem os seus méritos, nem os seus artífices, nem sequer a existência, de facto, do alegado “abaixo-assinado”. Não que neguemos a sua existência. Pelo contrário. Mas quem souber que a democracia não pode representar a ditadura das maiorias sobre as minorias, não entenderá o alcance público, político e até ideológico, de tanta “alegria” que tal contrapetição ou antipetição vem causando entre gregos e troianos.

Notas:

(*) Arsénio Fermino de Pina, «Ês ka ta kdi», Liberal, 30. Out. 2009
( http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=50&id=25653&idSeccao=533&Action=noticia )
(**) João Carlos Espada, «A Democracia face ao equívoco relativista», 2009
( http://www.ionline.pt/interior/index.php?p=news-print&idnota=16157 )
(***) «Liberal publica a primeira “Declaração Política” do MpD, assinada por 580 cidadãos, MPD comemora “fim do regime de partido único” em Cabo Verde», Liberal on-line, 9. Mar. 2009
( http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=27616&idSeccao=523&Action=noticia )
(****) Decreto-Lei n.º 3/ 2003, de 24 de Fevereiro, que estabelece o regime jurídico dos espaços naturais, paisagens, monumentos e lugares que pela relevância para a biodiversidade, pelos seus recursos naturais, função ecológica, interesses sócio-económico, cultural, turístico ou estratégico, merecem uma protecção especial e integrar-se na Rede Nacional das Áreas Protegidas.

Legendas das imagens:

1. Recibo da PETIÇÃO de 3. Out. 2006 à AN. O PAN, Aristides Lima, não respondeu

2. Recibo da RECLAMAÇÃO de 3. Out. 2006 à PGR. Nem respondeu Franklin Furtado, o anterior PGR, nem Júlio Martins, o actual PGR

3. Recibo da PETIÇÃO da ACÇÃO POPULAR de 16. Jul. 2007 à AN. Aristides Lima, o PAN (e candidato a PR) não respondeu. Apenas informou que a remeteu para parecer da Comissão Especializada de Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e Comunicação Social

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