A cultura de um povo é toda a sua memória.


quinta-feira, 13 de maio de 2010

O PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO, A CULTURA E O TURISMO, VECTORES DE UMA VISÃO TRIDIMENSIONAL PARA A CIDADE DE MINDELO

No frenesim do diálogo bem intencionado que alguns cidadãos vêm promovendo no jornal Liberal sobre a questão do património arquitectónico da cidade de Mindelo, as ideias vão surgindo em meio ao arrepiante cenário de uma espada de Dâmocles que vemos pendente sobre a CASA ADRIANA . Num meu comentário a recente artigo publicado sobre o assunto, proferi as seguintes palavras que não é demais relembrar: “Se por um lado é angustiante sabermos negligenciado e ameaçado o património da nossa cidade, por outro é reconfortante saber que persistem ainda alguns espíritos lúcidos e de boa vontade que se agitam no meio das consciências adormecidas.

Estou neste momento a pensar em nomes de pessoas com efectiva responsabilidade social, pelo seu valor intrínseco e pelo que podem potencialmente acrescentar a este diálogo, ampliando-o e valorizando-o. Mas não, deflagra-se a polémica e não há ruído de fundo nem estridência que os acorde da sua espantosa letargia. Tinha razão Maritn Luther King quando proclamou: - Não são os homens maus que me preocupam, mas sim o silêncio dos bons”.

Na verdade, é intrigante que os homens da nossa cultura se remetam ao silêncio. Incompreensivelmente, a ameaça de delapidação do nosso património cultural parece não estar a mexer com quem devia sentir o problema à flor da pele. A não ser que estejamos perante um fenómeno sociológico de “maioria silenciosa”, isto é, de uma maioria que tem a percepção instintiva da ameaça mas que se acomoda por temor ou simples rotina, o que, em ambos os casos, não deixa de ser revelador de insuficiente amadurecimento cívico. É pena, porque sem um efectivo envolvimento dos cidadãos, a democracia não produz o pleno das suas virtudes como regime, ficando restringida ao formalismo dos mecanismos eleitorais e à relativa inocuidade dos fóruns de discussão política. Tanto mais que os cidadãos têm vias informais de participação cívico-democrática, podendo mesmo utilizar formas de associação em defesa dos seus legítimos interesses se vêem que os órgãos do poder não respondem cabalmente às suas aspirações e expectativas.

Em artigos publicados neste jornal pelo arquitecto Nuno Ferro Marques e pelo Dr. José Fortes Lopes, foi posta a tónica na necessidade de requalificar o espaço urbano definido pelas referências arquitectónicas, ou “nós” de ligação, na expressão do último, que são os seguintes quatro edifícios emblemáticos: o Palácio, o velho Liceu, a Casa do Dr. Adriano e a Casa de Pedro Neves. A ideia é nobilitar esse espaço, afectando-lhe infra-estruturas que o transformem, numa opção conceptual, no “Campus Universitário” da cidade de Mindelo, que, para o efeito, incluiria, por certo, o estabelecimento de ensino superior instalado no velho Liceu, edifícios de apoio administrativo, residências, cantinas, biblioteca, livrarias, etc.

Um projecto deste alcance, que seria auspicioso para o relançamento da cidade, requer naturalmente um estudo aprofundado e de incidência multidisciplinar, evolvendo arquitectos, urbanistas, pedagogos, economistas, etc. Obrigará a repensar toda a zona balizada por aqueles “nós” de ligação, visto que será necessário redimensionar a capacidade de alguns edifícios ali existentes, de forma a adaptá-los às exigências do “Campus Universitário”, sem excluir a muito provável necessidade de construir de raiz uma ou outra infra-estrutura. Todavia, no meu entendimento, a Casa Adriana estará mais vocacionada, pela sua história, pela nobreza da sua traça e pela sua localização, para acolher o “Museu da Cidade”, o qual deverá reservar, imprescindivelmente, um espaço privilegiado para perpetuar a memória dos seus ilustres ocupantes, designadamente o antigo deputado por Cabo Verde.

Da discussão nasce a luz, soe dizer-se, e eis que a ameaça de insana aniquilação que paira sobre esta Casa tem ao menos a virtude de nos propiciar a reflexão e o fluir de ideias (espécie de “brainstorming”), conduzindo-nos a outras latitudes do pensamento, como, por exemplo, teorizar sobre modelos de solução para reabilitar o nosso centro urbano. Há dias, foi aqui introduzida a noção, irrefutável, de que o Turismo não é indiferente ao tema do Património. E acrescento que a Cultura também lhe está associada umbilicalmente, daí que, conforme o título dado a este artigo, o Património, a Cultura e o Turismo tenham de ser vistos como vectores de uma visão tridimensional para a requalificação e o desenvolvimento sustentado da cidade de Mindelo. Esta asserção pode ser entendida como um mero chavão, por obviamente ser aplicável a qualquer outra realidade social. Mas só quem não conhece a história da nossa cidade e as suas peculiaridades sociais e potencialidades culturais, não obstante a escassez de recursos naturais, poderá ver nessa afirmação um simples chavão. O Turismo está, obviamente, a jusante dos outros referidos vectores, como consequência e como necessidade, mas numa interdependência sistémica que obriga a que todo o projecto estratégico se conceba com integração simultânea de todos esses vectores.

É importante não nos iludirmos sobre a actual realidade da nossa cidade, tomando a nuvem por Juno. É certo que Mindelo, à semelhança de outras cidades de hoje, cresceu consideravelmente por pressão residencial, ganhando uma qualidade de vida, proporcionada por modernos padrões de construção, que não tem paralelo com tempos anteriores. Mas se esta evolução nos conforta, e com justa razão, ela não acrescenta especial valor turístico à cidade, visto que, em requisitos de construção urbana, não se diferencia de outras do mesmo quadrante de desenvolvimento. Nenhum turista nos visitará só pelos módulos urbanos que dilataram os limites da cidade. Fá-lo-á, sim, pela singularidade histórico-cultural que poderá encontrar na nossa “morada” , porque é onde, em cada construção, em cada rua, em cada pedra, escutará os ecos e rumores do passado e apreenderá alguma coisa da alma do povo visitado.

A nossa “morada” é o que é, nem mais nem menos. Embora não possa falar com inteiro conhecimento, acho que os nossos governantes autárquicos souberam, muito bem, resistir à tentação de descaracterizar a zona antiga da cidade, e é por isso que, como revés da medalha, existem aí muitas casas degradadas que, no entanto, poderiam ser remodeladas sem alterar demasiado a sua traça original. Seria uma solução de alternativa à excessiva pressão imobiliária nas periferias, com a vantagem de reanimar o centro urbano. De resto, em Mindelo como em outras cidades, a revitalização das áreas onde é mais susceptível a animação social é uma forma de contrariar a tendência actual para os cidadãos se alienarem dos espaços públicos e se autonomizarem nos espaços privados.

É precisamente na “morada” que estão os bens arquitectónicos depositários da nossa memória colectiva. Uns não oferecem dúvidas, como é o caso do Fortim d’El-Rei, a antiga Capitania, o Palácio, a Casa Adriana, a antiga Alfândega e outros mais que podem ser considerados não pelo seu valor intrínseco mas por referenciarem formas de património imaterial, como o cinema Eden Park e a antiga Oficina de Artes e Ofícios, da Pontinha. Transpondo para um exercício teórico mais alargado, decerto se concluirá que faz sentido considerar o Porto Grande e a sua urbe como um “nó” histórico. Um “nó” tão importante como outros que balizaram as rotas marítimas transatlânticas da época da navegação a vapor, principalmente, a seguir à Segunda Revolução Industrial. Então, importa recuperar e reabilitar em vez de consentir, numa abulia incompreensível, que se transformem em “pardieiros” (na expressão de pessoas menos avisadas) edifícios que são marcos indeléveis da história da urbe.

A revalorização de Mindelo passa por um projecto que salvaguarde e enalteça a sua identidade histórica, como centro que foi da cultura cabo-verdiana e como coração que pulsou pela saúde da economia do arquipélago. Um projecto desta natureza joga com a conciliação entre a representação simbólica e a realidade, implicando a reanimação de testemunhos materiais sobreviventes e/ou devidamente recuperados e a construção de réplicas miniaturizadas dos tempos antigos do porto e das principais actividades que se instalaram na orla ribeirinha.

Os testemunhos que sobrevivem serão objecto de beneficiação e integração num roteiro turístico, enquanto as réplicas e modelos serão expostos em museus, tantos quantos possam congregar na sua diversidade uma ideia da evolução da cidade. Com efeito, pensemos no património arquitectónico existente ou que é susceptível de ser tido como tal, e meditemos nas potencialidades memorialísticas e museológicas que nos pode oferecer a história mais recuada do Porto Grande e sua cidade. Uma cidade como a nossa pode conceber a existência dos seguintes museus: Museu da Cidade (Casa Adriana?); Museu da Cultura, Museu do Mar (antiga Capitania?); Museu das Oficinas Navais (Oficina da Pontinha?); Museu Etnográfico (antigo Grémio?); Museu da Música.

Pode julgar-se que Mindelo não possui monumentalidade patrimonial histórica edificada, senão os parcos edifícios que conhecemos e foram aqui referidos, mas a grandiosidade da nossa baía é o nosso principal trunfo. Irradiando encanto telúrico, ela subentende, mesmo na sua actual letargia, uma história que tem de ser acordada do seu sono e divulgada a quem nos visita, como principal cartaz turístico. Assim, é possível constituir imagens representativas do que o Porto Grande foi no passado, junto à urbe que graciosamente o envolve num amplexo amoroso.

Ideias válidas surgirão por certo de especialistas na matéria, mas desde já antevejo como possível: construir miniaturas, à escala adequada, do Porto Grande e da Cidade, nos seus primórdios e em diferentes etapas evolutivas; o mesmo para os antigos depósitos de carvão e seus carris e vagonetas; produzir réplicas miniaturizadas de antigos navios a vapor, memoriais das antigas casas da comunidade britânica residente, do antigo e extinto cemitério inglês, com nomes das pessoas mais conhecidas nele sepultadas, da antiga Companhia do Telégrafo Inglês e da Italcable, de acontecimentos históricos de relevo como a passagem do Zeppelim e a travessia aérea do Atlântico por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, e das carreiras marítimas internacionais que demandavam o nosso Porto. Tudo isto entre outros factos e acontecimentos que figuram nos anais do Porto Grande.

E com que recursos se vai por isso em prática? Com políticas que incentivem parcerias público-privadas e procurando a cooperação estrangeira (Governos e ONG’s), designadamente, a França para o caso específico da memória do Dr. Sallis e da do cientista Roberto Duarte Silva, e a Inglaterra para a recriação do antigo porto carvoeiro e da imagem da cidade que os seus súbditos ajudaram a nascer e a prosperar.
A memória histórica de projecção internacional, com o seu núcleo centrado no mais importante porto carvoeiro do Atlântico Médio, como foi o nosso, complementa-se com a reconstituição das características típicas da cidade do Mindelo, projectando o seu conjunto integrado como cartaz turístico de sucesso dependente unicamente da imaginação criativa com que tido for idealizado. Nesse sentido, vejo a zona da Canequinha, a rua da Praia e outras a serem revalorizadas com adequado “tratamento turístico”, com demarcação de zonas pedonais, recriando-se os “botequins” típicos, em que se pode comer moreia frita e beber grogue e ponche, mas que têm de se tornar mais apelativos, com outros requisitos de higiene e de apetrechamento. Pena é a Praça Estrela ter sido desfigurada aquando da sua remodelação, deixando de ser um espaço que exalava exotismo para se constituir numa amálgama inestética de barracas de vendas.

Os nossos antigos veleiros das carreiras de cabotagem, de que se podem fazer miniaturas, além de se construir pelo menos uma réplica do Ildut ou do Carvalho, são outro aspecto explorável e com potencialidades interessantes. Neste âmbito, é rico o acervo de episódios e narrativas em que o pitoresco e o rocambolesco se misturam, oferecendo-nos quadros de um quotidiano inigualável. Ao trazer esta sugestão, lembro-me de capitães míticos, como o Joquim de Nhô, Jesuíno, Augusto e tantos outros.

E aqui entra o património cultural imaterial que o nosso Zizim tem vindo a recriar de forma admirável, pelo que as suas “estórias” serão um contributo valiosíssimo para darmos vida ao Soncent do tempo dos tempos idos, à parte outros contributos importantes como o livro do Sr. Nena (Manuel Nascimento Ramos) “Mindel de Outrora”, e a rica memória pessoal de cidadãos como o Valdemar Pereira, que em breve vai lançar um livro sobre o teatro mindelense na década de 1950. Em suma, do bom entrelaçamento entre o património material e o imaterial, será possível recuperar, molécula a molécula, a alma do Mindelo, que não se pode deixar sucumbir, porque tudo isso não só constitui um factor de enculturação e socialização como um produto vendável para o exterior. Em todo este processo entra, naturalmente, a música, o teatro, as tradições e outras práticas culturais, numa relação fecunda e transversal com os instrumentos de actuação a utilizar para a revitalização do centro da nossa cidade e o renascimento do Mindelo carismático.
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Termino, recuperando palavras de um meu comentário recente.

A nossa ilha não é das mais velhas onde assentou o colono, longe disso, mas a verdade é que, abstraindo da escala temporal mais dilatada em que a História se tece, S. Vicente rapidamente se tornou um importante “nó” de ligação e entrecruzamento com outras histórias e outros povos. Recuperar a sua antiga imagem de prestígio e saber projectá-la é condição importante para captar o turismo e torná-lo uma séria aposta estratégica da economia da ilha. O europeu que demanda uma ilha como a nossa espera certamente encontrar um “cluster turístico do mar” que, para além da fruição do sol e da praia, lhe ofereça actividades como a pesca, o mergulho e o desporto náutico, para as quais dispomos de belíssimas condições naturais e “know-how”. Mas vem também, e seguramente, em busca de cultura, tradição e mito, e nisso temos uma singularidade que deve ser explorada em todas as suas matizes imaginativas. Esta evidência é que nos induz a censurar a aniquilação do património arquitectónico que é a CASA ADRIANA.
Tomar, 23 de Março de 2010
Adriano Miranda Lima

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